sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O Espelho (capítulo 4)

Algum tempo se passou, sem que Valentine tivesse contato com Brian. Nem por sonhos, nem na vida cotidiana. Já tinha até mesmo dúvidas se aquele encontro na biblioteca havia mesmo acontecido. O mais incrível é que seu coração sentia uma saudade dolorida, como se alguém muito querido estivesse distante. Estaria apaixonada por um personagem de sonho?! “Só mesmo uma maluca como eu pra sentir um negócio desse!” Tentou espantar o baixo-astral tirando sarro de si mesma.

O dia de Samhain, considerado o Ano-Novo dos Bruxos, se aproximava e Valentine queria voltar a celebrar os ritos pagãos. Pelo menos assim, não se sentia tão só. Os rituais eram sempre um bom pretexto para celebrar a vida, fazer contato com os Deuses e, quem sabe, tomar um pouco de vinho consagrado...

Valentine sabia que nesta noite especial, o véu entre os mundos ficava mais tênue, possibilitando o contato com os ancestrais. “Quem sabe hoje eu possa encontrar uma explicação para toda essa loucura”, pensou enquanto penteava os longos cabelos. Pouco a pouco, foi deixando de lado as preocupações, os problemas do trabalho, as contas a pagar. Ao colocar sobre o corpo nu banhado de ervas, sua roupa cerimonial, teve aquela sensação que há tanto tempo não sentia. Olhou-se no espelho e viu a Sacerdotisa que um dia fora, a filha e a serva da Deusa. Seus olhos delineados ganharam um brilho flamejante. Sim, ela ainda tinha um brilho de bruxa no olhar.

O Círculo Sagrado do Vale das Bromélias já estava todo iluminado por tochas. A vibração forte da magia podia ser sentida. O vento frio derrubava lentamente as folhas marrons das árvores, dando sinais de que o inverno estava cada vez mais próximo. Valentine caminhava lentamente, refletindo sobre o simbolismo daquela data. A morte do Rei, o lamento da Deusa, o período sombrio, os dias cada vez mais curtos, as longas e frias noites de inverno, a hibernação das plantas e dos animais e enfim, o renascimento. Ano Novo, Vida Nova... “que assim seja e assim se faça!”, pensou, num suspiro.

A fogueira no centro do círculo crepitava. Valentine descalçou os sapatos, pulou a vassoura de palha que servia como portal e entrou. O altar estava montado com os quatro elementos representados de forma simples. Um punhado de terra, uma vela vermelha, um cálice com água e um incensário. Pensando em seus ancenstrais, Valentine acendeu uma vela branca, colocou comidas e flores para homenageá-los.
Fechou os olhos, respirou fundo, buscou inspiração dentro de si. Respirando, logo se sentiu pronta para lançar o círculo de proteção. Ergueu os braços, visualizando uma grande bolha azul em torno de si, por onde o mal não poderia passar. Saudou os quatro quadrantes e convidou os ancestrais para participarem com ela daquele ritual.

Um leve torpor tomou conta da jovem bruxa. Imagens desconexas começavam a tomar conta de sua mente. Lembrou-se da infância. Do rosto de sua avó. Viu-se sentada ao lado dela, aprendendo a confeccionar uma boneca de pano e ouvindo os ensinamentos da magia. “Em cada laçada, uma inspiração. Siga o ritmo do seu coração. Veja seu intento realizado, em cada ponto amarrado.” Em seu anseio de menina, via-se pedalando uma bicicleta novinha, com o vento acariciando seu rosto sorridente. A imagem da infância se apagou.

Valentine se viu um pouco mais velha e de novo o rosto de sua avó, cansado, o olhar enfraquecido. “Minha filha querida, entrego meu dom a você...” estendendo suas mãos enrugadas, a velha entregou a Valentine um objeto embrulhado num pano de cetim preto. Pela janela entreaberta, a lua cheia assistia àquele momento. A menina, que acabara de completar 13 anos, desembrulhou o objeto e não pôde conter a surpresa.

Era um espelho de prata, todo trabalhado à mão e com um aspecto muito antigo. Sentiu um estranho calor em suas mãos. Olhou-se. A imagem oscilava, ora nítida, ora turva. Viu a luz da lua refletir no espelho e em seus olhos, viu-se mais velha. Uma mulher feita a contemplar-se no espelho. Assustou-se e cobriu a imagem. “Não posso aceitar!” A avó compreendia a imaturidade da menina, mas não havia mais tempo. “Querida, esse presente já é seu muito antes da sua chegada a esse mundo. Guarde-o e não deixe que ninguém além de você o toque!”

A lembrança dolorosa fez com que Valentine soluçasse involuntariamente. Abriu os olhos momentaneamente e voltou ao círculo. Fez o que a avó lhe pediu durante todos esses anos. Mas desde aquela visão, aos 16 anos, nunca mais teve coragem de encarar o espelho. Estava guardado em sua caixa mágica, embrulhado no mesmo pano preto, junto com as outras bugigangas místicas. Um ano antes da morte de seus pais, numa brincadeira, Valentine previu o terrível acidente dentro do espelho. Já tinha se esquecido da visão quando ela se concretizou.

Um sentimento de angústia apertou-lhe o peito. Ajoelhou-se num misto de solidão e tristeza. De repente, um vento gelado soprou e uivou. Uma chuva de folhas secas inundou o círculo mágico. Uma imagem invadiu sua mente como um punhal que atravessa o coração: os olhos de Brian em seu azul mais profundo. Valentine gritou. Já não sabia se a voz tinha mesmo saído ou se era sua alma que estava gritando.

Colocou a mão no chão, tentou se equilibrar. Viu a caixa à sua frente. Tremia. Abriu-a lentamente. Embora estivesse escuro, podia ver o espelho brilhando sob o pano. Embora o medo lhe atormentasse, suas mãos ansiosas buscaram o objeto mágico. Antes de abrir, pensou mais um pouco. “Será?!” Os dedos descobriam o espelho sem dar atenção aos seus pensamentos. Olhou. Novamente, a luz da lua se refletia com uma aura azul.

Viu seu rosto ainda transtornado, desaparecendo aos poucos. A luz da lua deu lugar à escuridão. Nuvens negras e densas passavam dentro do espelho. Viu um homem caído no chão, numa pequena clareira da densa floresta. Lobos o cercavam. Um filete de sangue escorria de sua boca. Brian! O grito ecoou na visão de Valentine. Se por um lado não sabia se queria continuar a ver, a saudade de seu amado e o mistério acerca dele a fizeram prosseguir na visão.

Tentou se aproximar para ver o que acontecia com o rapaz. Percebeu que era também uma imagem do passado. Brian ainda não apresentava os traços másculos atuais, era quase um menino! Demorou-se um pouco naquela visão, como quem vela o sono da pessoa amada. Foi quando percebeu um ruído de folhas se movendo e viu um vulto. Teve tempo apenas de ver um homem de capa preta, sumindo na escuridão que aos poucos tomou conta do espelho novamente.

Valentine continuou a olhar, queria agora saber mais. A bruxa posicionou o espelho de forma que a lua se refletisse novamente nele. Por detrás das nuvens, a Deusa parecia bailar uma pacífica e silenciosa canção. Aos poucos, uma nova imagem se formou. Brian, sozinho, sentado em uma pedra, abraçando as próprias pernas, olhando para o vazio. A barba por fazer deixava claro que aquele momento era atual. Seus olhos deixavam transparecer o que lhe ia na alma. O mesmo sentimento que tantas vezes Valentine experimentou, por outros motivos, em outros lugares: infinita tristeza e... solidão.

Ao longe, as batidas de um tambor começaram a ressoar. Primeiramente, um som monótono e bem marcado, aprofundando ainda mais o transe. Depois, outros instrumentos faziam-se ouvir, num ritmo vibrante e alegre. Palmas, gritos, risadas... Valentine começou a ver, no fundo do espelho, um ponto de luz. Era uma luz alaranjada, fora de foco. À medida que o som ficava mais alto, as imagens se definiam. O ponto de luz era uma fogueira que crepitava no centro de um grupo que conversava e dançava animadamente.

Entre todas as pessoas, Valentine percebeu uma moça de cabelos negros, muito bonita. Em seus olhos verdes, as chamas da fogueira brilhavam. Usava um vestido longo e decotado que valorizava suas formas. A moça batia os pés e as mãos vigorosamente, chamando para a dança um rapaz que estava sentado do outro lado da fogueira, saboreando uma taça de vinho e encarando-a com um leve sorriso de desejo. De repente, o rapaz sumiu, a moça girou em sua dança e deu de cara com ele. Todo o som silenciou, as pessoas sumiram. O momento suspenso, os olhos nos olhos, a respiração. Valentine sentia o que a moça sentia. Paixão!

Da mesma forma que a imagem surgiu, ela se distanciou, tornando-se apenas um ponto de luz e depois, novamente a escuridão. E dela, surgiu a imagem mais pavorosa que ela jamais pôde imaginar. Uma criatura das trevas, com olhos de fogo e afiados dentes de fera. Um rosto tão sinistro que saltou para fora do espelho e de forma ameaçadora, disse: “Fique longe dele!” O hálito quente e podre fez a sacerdotisa dar um salto para trás, jogando o espelho no chão.

Em outra parte da cidade Brian sentiu algo esquisito, como se uma força o chamasse.Desde a ultima vez que se encontrou com Valentine havia decidido ficar à uma distância mais segura, onde não a deixasse tão nervosa. Continuava a seguir todos os passos da garota, mas desta vez com cautela para não ser descoberto.

Brian ainda estava intrigado com o fato de pensar em Valentine e Sofia, como se fossem as mesmas garotas, era como se sua mente houvesse sido apagada desde o ultimo encontro com
Sofia naquela época tão distante.

A noite estava clara, a lua dominava todo o céu escuro, sentiu mais uma vez como se fosse chamado à algum lugar, não podia ficar parado, precisa descobrir o que era tudo isso e pôs-se a caminhar de encontro à energia tão forte que o direcionava.

Brian chegou no exato momento em que Valentine erguia os braços em direção à lua, ficou em silêncio atras de uma árvore observando tudo, a energia que emanava do corpo da garota o havia atraído até ali.

Não entendia porque a amava tanto, mas era muito bom, ficou alguns segundos olhando seus gestos tão precisos e todas as forças ali envolvidas, mas algo o tirou desta contemplação, e então um frio dentro do corpo o fez temer aquilo que via. Viu quando uma sombra esgueirou-se do outro lado de onde Valentine estava, ficou apreensivo.

Os olhos da criatura cintilaram quando valentine segurou algo em suas mãos, um espelho, Brian pôde sentir todo o ódio que emanava da criatura que parecia estar pronta para atacar a garota.
Brian nem teve tempo de agir, a fera tornou-se uma espessa fumaça e então desapareceu para logo depois sair de dentro do espelho jogando a garota no chão e fazendo-a desmaiar. Briian pulou de tras da árvore e correu na direção da garota, a criatura ameaçadora estava em pé olhando para ela e rindo diabolicamente enquanto segurava o espelho, Brian não teve dúvidas, e usando de todo o seu poder impôs as mãos sob as costas da criatura e emanou uma carga forte de energias que o fêz desaparecer trasnformado em varios corvos. Brian assustou-se e lembrou-se da visão, com seu pai.

O espelhoo caiu no chão e imediatamente Brian o recolheu e guardou consigo, abaixou-se e acariciou a face de Valentine, pensou em leva-la para dentro de casa mas não queria que ela soubesse que estivera ali naquela noite, e não pretendia devolver o espelho, não até descobrir porque o pai o desejava tanto.

Quando percebeu que Valentine acordava saiu e desapareceu enquanto caminhava em direção ao penhasco.

Brian sentou-se em uma pedra e em silêncio absorveu toda a energia daquele amanhecer, sentia-se revigorado diante de tão perfeita energia.

Olhou para o espelho mas não viu nada, a imagem parecia estar toda distorcida, afastou-o um pouco e então viu que seu medalhão refletia perfeitamente nele e com isso a imagem de seu rosto foi se tornando mais nitida e então tudo desapareceu antes que pudesse olhar melhor, mas deu lugar à uma outra imagem, pareciam cenas passadas, e então sumiram também mas antes uma enorme lua prateada tomou toda a face do espelho e o medalhão quase queimou seu peito de tão quente que ficou.

Guardou o espelho, pois havia entendido o recado.
Na noite daquele mesmo dia Brian subiu no telhado da velha fabrica, ali possicionou o espelho à sua frente onde pudesse receber a luz da lua e também refletir seu amuleto.

As primeiras imagens começaram a surgir, primeiro embaçadas e depois muito nitidas. Viu o belo rosto de Sofia e seu coração acelerou de forma absurda, neste ponto perdeu a concentração e a imagem sumiu.

Voltou a se concentrar e outras imagens foram surgindo, via um bosque, estava feliz, viu-se com uma garota, Sofia aparecia novamente, mas agora era diferente, estavam juntos, caminhavam felizes. Viu o olhar de medo da garota e então quando todo o boque pareceu entrar em uma escuridão ameaçadora, um denso nevoeiro os envolveu e então dois olhos de fogo brilharam na escuridão.Brian colocou-se a frente da garota para protegê-la, a terrível criatura se aproximava rápido e então parou a poucos passos do rapaz, neste momento Brian pôde ver suas feições, era aquele que dizia ser seu pai.

- Brian meu filho, é chegada a hora.- disse enquanto estendi os braços na direção do rapaz.
Brian o encarou sem medo e num tom agressivo disse:
-Do que fala? Se acha que vou me juntar a você pode esquecer, jamais serei como você seu monstro!

O Homem riu, sua risada ecoava pelo bosque, parecia a voz de mil demônios reunidos num só corpo.

Com apenas um movimento jogou Brian contra uma árvore, ele caiu meio atordoado, a criatura aproximou-se de Sofia e quando preparava-se para atacá-la Brian pulou por cima dele e começaram uma luta corpo a corpo, Brian deferiu diversos socos que não surtiram efeito algum sobre Lucius, cansado daquela cena patética Lucius o jogou longe com apenas um empurrão, voltou-se para Sofia e arreganhando os dentes foi para cima dela novamente, mas a garota não tinha mais medo e de dentro de seu decote um brilho azul começou a ficar cada vez mais intenso, tirou o amuleto para fora, algo que havia ganhado à muito tempo, e então Lucius afastou-se como se tivesse sido jogado para trás, com raiva deferiu um forte soco na cara de Brian que caiu no chão desacordado com os lábios sangrando.

A criatura abraçou o rapaz e disse antes de sumir junto com seu filho:

- Brian agora é meu, e você jamais voltará a encontrá-lo!!! Mantenha-se longe ou voltarei e acabarei com sua vida!

Sumiram numa densa nuvem negra feita de corvos, foi a ultima vez que Sofia viu Brian.