O dia de Samhain, considerado o Ano-Novo dos Bruxos, se aproximava e Valentine queria voltar a celebrar os ritos pagãos. Pelo menos assim, não se sentia tão só. Os rituais eram sempre um bom pretexto para celebrar a vida, fazer contato com os Deuses e, quem sabe, tomar um pouco de vinho consagrado...
Valentine sabia que nesta noite especial, o véu entre os mundos ficava mais tênue, possibilitando o contato com os ancestrais. “Quem sabe hoje eu possa encontrar uma explicação para toda essa loucura”, pensou enquanto penteava os longos cabelos. Pouco a pouco, foi deixando de lado as preocupações, os problemas do trabalho, as contas a pagar. Ao colocar sobre o corpo nu banhado de ervas, sua roupa cerimonial, teve aquela sensação que há tanto tempo não sentia. Olhou-se no espelho e viu a Sacerdotisa que um dia fora, a filha e a serva da Deusa. Seus olhos delineados ganharam um brilho flamejante. Sim, ela ainda tinha um brilho de bruxa no olhar.
O Círculo Sagrado do Vale das Bromélias já estava todo iluminado por tochas. A vibração forte da magia podia ser sentida. O vento frio derrubava lentamente as folhas marrons das árvores, dando sinais de que o inverno estava cada vez mais próximo. Valentine caminhava lentamente, refletindo sobre o simbolismo daquela data. A morte do Rei, o lamento da Deusa, o período sombrio, os dias cada vez mais curtos, as longas e frias noites de inverno, a hibernação das plantas e dos animais e enfim, o renascimento. Ano Novo, Vida Nova... “que assim seja e assim se faça!”, pensou, num suspiro.
A fogueira no centro do círculo crepitava. Valentine descalçou os sapatos, pulou a vassoura de palha que servia como portal e entrou. O altar estava montado com os quatro elementos representados de forma simples. Um punhado de terra, uma vela vermelha, um cálice com água e um incensário. Pensando em seus ancenstrais, Valentine acendeu uma vela branca, colocou comidas e flores para homenageá-los.
Fechou os olhos, respirou fundo, buscou inspiração dentro de si. Respirando, logo se sentiu pronta para lançar o círculo de proteção. Ergueu os braços, visualizando uma grande bolha azul em torno de si, por onde o mal não poderia passar. Saudou os quatro quadrantes e convidou os ancestrais para participarem com ela daquele ritual.
Um leve torpor tomou conta da jovem bruxa. Imagens desconexas começavam a tomar conta de sua mente. Lembrou-se da infância. Do rosto de sua avó. Viu-se sentada ao lado dela, aprendendo a confeccionar uma boneca de pano e ouvindo os ensinamentos da magia. “Em cada laçada, uma inspiração. Siga o ritmo do seu coração. Veja seu intento realizado, em cada ponto amarrado.” Em seu anseio de menina, via-se pedalando uma bicicleta novinha, com o vento acariciando seu rosto sorridente. A imagem da infância se apagou.
Valentine se viu um pouco mais velha e de novo o rosto de sua avó, cansado, o olhar enfraquecido. “Minha filha querida, entrego meu dom a você...” estendendo suas mãos enrugadas, a velha entregou a Valentine um objeto embrulhado num pano de cetim preto. Pela janela entreaberta, a lua cheia assistia àquele momento. A menina, que acabara de completar 13 anos, desembrulhou o objeto e não pôde conter a surpresa.
Era um espelho de prata, todo trabalhado à mão e com um aspecto muito antigo. Sentiu um estranho calor em suas mãos. Olhou-se. A imagem oscilava, ora nítida, ora turva. Viu a luz da lua refletir no espelho e em seus olhos, viu-se mais velha. Uma mulher feita a contemplar-se no espelho. Assustou-se e cobriu a imagem. “Não posso aceitar!” A avó compreendia a imaturidade da menina, mas não havia mais tempo. “Querida, esse presente já é seu muito antes da sua chegada a esse mundo. Guarde-o e não deixe que ninguém além de você o toque!”
A lembrança dolorosa fez com que Valentine soluçasse involuntariamente. Abriu os olhos momentaneamente e voltou ao círculo. Fez o que a avó lhe pediu durante todos esses anos. Mas desde aquela visão, aos 16 anos, nunca mais teve coragem de encarar o espelho. Estava guardado em sua caixa mágica, embrulhado no mesmo pano preto, junto com as outras bugigangas místicas. Um ano antes da morte de seus pais, numa brincadeira, Valentine previu o terrível acidente dentro do espelho. Já tinha se esquecido da visão quando ela se concretizou.
Um sentimento de angústia apertou-lhe o peito. Ajoelhou-se num misto de solidão e tristeza. De repente, um vento gelado soprou e uivou. Uma chuva de folhas secas inundou o círculo mágico. Uma imagem invadiu sua mente como um punhal que atravessa o coração: os olhos de Brian em seu azul mais profundo. Valentine gritou. Já não sabia se a voz tinha mesmo saído ou se era sua alma que estava gritando.
Colocou a mão no chão, tentou se equilibrar. Viu a caixa à sua frente. Tremia. Abriu-a lentamente. Embora estivesse escuro, podia ver o espelho brilhando sob o pano. Embora o medo lhe atormentasse, suas mãos ansiosas buscaram o objeto mágico. Antes de abrir, pensou mais um pouco. “Será?!” Os dedos descobriam o espelho sem dar atenção aos seus pensamentos. Olhou. Novamente, a luz da lua se refletia com uma aura azul.
Viu seu rosto ainda transtornado, desaparecendo aos poucos. A luz da lua deu lugar à escuridão. Nuvens negras e densas passavam dentro do espelho. Viu um homem caído no chão, numa pequena clareira da densa floresta. Lobos o cercavam. Um filete de sangue escorria de sua boca. Brian! O grito ecoou na visão de Valentine. Se por um lado não sabia se queria continuar a ver, a saudade de seu amado e o mistério acerca dele a fizeram prosseguir na visão.
Tentou se aproximar para ver o que acontecia com o rapaz. Percebeu que era também uma imagem do passado. Brian ainda não apresentava os traços másculos atuais, era quase um menino! Demorou-se um pouco naquela visão, como quem vela o sono da pessoa amada. Foi quando percebeu um ruído de folhas se movendo e viu um vulto. Teve tempo apenas de ver um homem de capa preta, sumindo na escuridão que aos poucos tomou conta do espelho novamente.
Valentine continuou a olhar, queria agora saber mais. A bruxa posicionou o espelho de forma que a lua se refletisse novamente nele. Por detrás das nuvens, a Deusa parecia bailar uma pacífica e silenciosa canção. Aos poucos, uma nova imagem se formou. Brian, sozinho, sentado em uma pedra, abraçando as próprias pernas, olhando para o vazio. A barba por fazer deixava claro que aquele momento era atual. Seus olhos deixavam transparecer o que lhe ia na alma. O mesmo sentimento que tantas vezes Valentine experimentou, por outros motivos, em outros lugares: infinita tristeza e... solidão.
Ao longe, as batidas de um tambor começaram a ressoar. Primeiramente, um som monótono e bem marcado, aprofundando ainda mais o transe. Depois, outros instrumentos faziam-se ouvir, num ritmo vibrante e alegre. Palmas, gritos, risadas... Valentine começou a ver, no fundo do espelho, um ponto de luz. Era uma luz alaranjada, fora de foco. À medida que o som ficava mais alto, as imagens se definiam. O ponto de luz era uma fogueira que crepitava no centro de um grupo que conversava e dançava animadamente.
Entre todas as pessoas, Valentine percebeu uma moça de cabelos negros, muito bonita. Em seus olhos verdes, as chamas da fogueira brilhavam. Usava um vestido longo e decotado que valorizava suas formas. A moça batia os pés e as mãos vigorosamente, chamando para a dança um rapaz que estava sentado do outro lado da fogueira, saboreando uma taça de vinho e encarando-a com um leve sorriso de desejo. De repente, o rapaz sumiu, a moça girou em sua dança e deu de cara com ele. Todo o som silenciou, as pessoas sumiram. O momento suspenso, os olhos nos olhos, a respiração. Valentine sentia o que a moça sentia. Paixão!
Da mesma forma que a imagem surgiu, ela se distanciou, tornando-se apenas um ponto de luz e depois, novamente a escuridão. E dela, surgiu a imagem mais pavorosa que ela jamais pôde imaginar. Uma criatura das trevas, com olhos de fogo e afiados dentes de fera. Um rosto tão sinistro que saltou para fora do espelho e de forma ameaçadora, disse: “Fique longe dele!” O hálito quente e podre fez a sacerdotisa dar um salto para trás, jogando o espelho no chão.
Em outra parte da cidade Brian sentiu algo esquisito, como se uma força o chamasse.Desde a ultima vez que se encontrou com Valentine havia decidido ficar à uma distância mais segura, onde não a deixasse tão nervosa. Continuava a seguir todos os passos da garota, mas desta vez com cautela para não ser descoberto.
Brian ainda estava intrigado com o fato de pensar em Valentine e Sofia, como se fossem as mesmas garotas, era como se sua mente houvesse sido apagada desde o ultimo encontro com
Sofia naquela época tão distante.
A noite estava clara, a lua dominava todo o céu escuro, sentiu mais uma vez como se fosse chamado à algum lugar, não podia ficar parado, precisa descobrir o que era tudo isso e pôs-se a caminhar de encontro à energia tão forte que o direcionava.
Brian chegou no exato momento em que Valentine erguia os braços em direção à lua, ficou em silêncio atras de uma árvore observando tudo, a energia que emanava do corpo da garota o havia atraído até ali.
Não entendia porque a amava tanto, mas era muito bom, ficou alguns segundos olhando seus gestos tão precisos e todas as forças ali envolvidas, mas algo o tirou desta contemplação, e então um frio dentro do corpo o fez temer aquilo que via. Viu quando uma sombra esgueirou-se do outro lado de onde Valentine estava, ficou apreensivo.
Os olhos da criatura cintilaram quando valentine segurou algo em suas mãos, um espelho, Brian pôde sentir todo o ódio que emanava da criatura que parecia estar pronta para atacar a garota.
Brian nem teve tempo de agir, a fera tornou-se uma espessa fumaça e então desapareceu para logo depois sair de dentro do espelho jogando a garota no chão e fazendo-a desmaiar. Briian pulou de tras da árvore e correu na direção da garota, a criatura ameaçadora estava em pé olhando para ela e rindo diabolicamente enquanto segurava o espelho, Brian não teve dúvidas, e usando de todo o seu poder impôs as mãos sob as costas da criatura e emanou uma carga forte de energias que o fêz desaparecer trasnformado em varios corvos. Brian assustou-se e lembrou-se da visão, com seu pai.
O espelhoo caiu no chão e imediatamente Brian o recolheu e guardou consigo, abaixou-se e acariciou a face de Valentine, pensou em leva-la para dentro de casa mas não queria que ela soubesse que estivera ali naquela noite, e não pretendia devolver o espelho, não até descobrir porque o pai o desejava tanto.
Quando percebeu que Valentine acordava saiu e desapareceu enquanto caminhava em direção ao penhasco.
Brian sentou-se em uma pedra e em silêncio absorveu toda a energia daquele amanhecer, sentia-se revigorado diante de tão perfeita energia.
Olhou para o espelho mas não viu nada, a imagem parecia estar toda distorcida, afastou-o um pouco e então viu que seu medalhão refletia perfeitamente nele e com isso a imagem de seu rosto foi se tornando mais nitida e então tudo desapareceu antes que pudesse olhar melhor, mas deu lugar à uma outra imagem, pareciam cenas passadas, e então sumiram também mas antes uma enorme lua prateada tomou toda a face do espelho e o medalhão quase queimou seu peito de tão quente que ficou.
Guardou o espelho, pois havia entendido o recado.
Na noite daquele mesmo dia Brian subiu no telhado da velha fabrica, ali possicionou o espelho à sua frente onde pudesse receber a luz da lua e também refletir seu amuleto.
As primeiras imagens começaram a surgir, primeiro embaçadas e depois muito nitidas. Viu o belo rosto de Sofia e seu coração acelerou de forma absurda, neste ponto perdeu a concentração e a imagem sumiu.
Voltou a se concentrar e outras imagens foram surgindo, via um bosque, estava feliz, viu-se com uma garota, Sofia aparecia novamente, mas agora era diferente, estavam juntos, caminhavam felizes. Viu o olhar de medo da garota e então quando todo o boque pareceu entrar em uma escuridão ameaçadora, um denso nevoeiro os envolveu e então dois olhos de fogo brilharam na escuridão.Brian colocou-se a frente da garota para protegê-la, a terrível criatura se aproximava rápido e então parou a poucos passos do rapaz, neste momento Brian pôde ver suas feições, era aquele que dizia ser seu pai.
- Brian meu filho, é chegada a hora.- disse enquanto estendi os braços na direção do rapaz.
Brian o encarou sem medo e num tom agressivo disse:
-Do que fala? Se acha que vou me juntar a você pode esquecer, jamais serei como você seu monstro!
O Homem riu, sua risada ecoava pelo bosque, parecia a voz de mil demônios reunidos num só corpo.
Com apenas um movimento jogou Brian contra uma árvore, ele caiu meio atordoado, a criatura aproximou-se de Sofia e quando preparava-se para atacá-la Brian pulou por cima dele e começaram uma luta corpo a corpo, Brian deferiu diversos socos que não surtiram efeito algum sobre Lucius, cansado daquela cena patética Lucius o jogou longe com apenas um empurrão, voltou-se para Sofia e arreganhando os dentes foi para cima dela novamente, mas a garota não tinha mais medo e de dentro de seu decote um brilho azul começou a ficar cada vez mais intenso, tirou o amuleto para fora, algo que havia ganhado à muito tempo, e então Lucius afastou-se como se tivesse sido jogado para trás, com raiva deferiu um forte soco na cara de Brian que caiu no chão desacordado com os lábios sangrando.
A criatura abraçou o rapaz e disse antes de sumir junto com seu filho:
- Brian agora é meu, e você jamais voltará a encontrá-lo!!! Mantenha-se longe ou voltarei e acabarei com sua vida!
Sumiram numa densa nuvem negra feita de corvos, foi a ultima vez que Sofia viu Brian.