quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Fatalidades (capítulo 5)

Desacordada, Valentine ficou, até que um bando de periquitos cruzou o céu numa alegre tagarelice matinal. Abriu os olhos sem entender bem onde estava. A cabeça doía. Lembrou-se do ritual. Um frio lhe percorreu a espinha ao lembrar da última visão. Olhou ao redor em busca do espelho. “Sumiu!”

A lembrança do ocorrido a fez estremecer. Um misto de tontura e pavor a fizeram caminhar aos tropeços até o carro, que estava parado a alguns metros dali. Buscou a chave apressadamente dentro da bolsa e entrou. Olhou pelo retrovisor para dar a ré e viu, atrás de seu carro, o mesmo homem da capa preta que atacou Brian, em sua visão do espelho. Não pôde conter o grito de terror, levando as mãos instintivamente aos olhos.

Ficou assim por alguns instantes, paralisada de medo, sem coragem de olhar de novo. O grito deu lugar ao silêncio. Apenas os sons da respiração e do coração dela, batendo feito tambor por debaixo da pele tomavam conta do ambiente. “Preciso sair daqui” A voz interna a tirou do estado catatônico para a realidade, como um soco na face. Então, ela abriu os olhos e desviou o olhar do espelho, virando o corpo para olhar atrás. Nada. O sol brilhava, banhando as folhas de luz, suavemente.

Deu a partida e se foi, dirigindo mecanicamente, com os pensamentos voando a 120km/h. “Quem teria levado o espelho? Quem era aquela criatura horripilante? Por que o homem da capa estava atrás dela? E talvez, a mais angustiante das perguntas: “Onde está Brian nesse momento? Será que ele está bem??”

A mente percorria todas as possibilidades em um turbilhão atordoante. Valentine não queria mais pensar, mas também não conseguia esquecer. Um forte enjoo tomou conta dela e a vista se turvou. Sem perceber, deixou o carro invadir a pista contrária e cruzou o acostamento. Quando um fio de lucidez a fez afundar o pé no freio, já era tarde. Teve apenas o tempo de sentir o chão sumindo sob as rodas do carro, os segundos de queda livre, o gelo na barriga e a violenta pancada no chão. O carro ainda andou alguns metros com certa velocidade, até parar bruscamente ao encontrar uma árvore. Então, tudo se apagou.

Brian, no ponto mais alto do telhado da fábrica, tragava seu cigarro, como se a fumaça lhe trouxesse à tona as lembranças. Depois das visões no espelho, procurava saborear o passado, reviver o tempo em que era feliz, livre daquela maldição. Quanto tempo havia se passado desde então? Às vezes, conseguia lembrar tão nitidamente que parecia ontem. Mas então, o hoje se tornava tão esmagadoramente pesado, que aquele tempo bom já não era nem mais essa vida, tinha ficado perdido em algum lugar muito, muito distante.

Nesse momento, sentiu seu coração apertar. Uma saudade infinita da mãe, o sorriso da doce Sofia, os olhos bruxescos de... Valentine! Quando o olhar de sua amada lhe invadiu o pensamento, o rapaz levou um choque. Subitamente, uma pontada dentro da cabeça o fez gritar. Fechou os olhos com força e viu a imagem do carro descendo o barranco, o rosto ensanguentado de Valentine.

“Não, não pode ser!” Levou as mãos na cabeça em um gesto de desespero. Lembrou da ameaça do pai:

- Se você insistir em procurá-la, quem levará a pior será ela! Você precisa entender que já não faz parte daquele mundo. Seu lugar é aqui, junto de seu pai, para cumprir o destino da nossa família! O amor é um sentimento que nos distancia e impede de chegar onde queremos. Enquanto você insistir em viver aquela vidinha que levava junto à sua mãe, verá as pessoas à sua volta caindo, uma a uma, sofrendo as conseqüências da sua fraqueza. Deixe de vez essa matéria que não lhe pertence mais e tanto te limita na busca de nossos objetivos!
Nesse ponto, Brian não se conteve mais. Aos berros, despejou todo o rancor guardado em seu coração.


- Os seus objetivos nunca foram os meus e nunca serão! Você tem apenas metade do domínio sobre minha vida. Minha mãe me deixou de herança, além do caráter, a chave do portal entre os mundos e, enquanto eu puder, lutarei pela liberdade de minha alma. Assim como eu sou obrigado a voltar todos os dias para esse inferno que você chama de lar, dou-me ao direito de ir para onde quiser no tempo que me pertence. Será bem mais fácil você desistir de me usar para seu jogo sujo do que eu me dobrar às suas vontades.

Impassível, com um leve sorriso de deboche no rosto, Lucius ouvia o filho falar de seus sentimentos como uma criança que não sabe o que diz.

- A escolha é sua, meu filho! Você poderia simplesmente se aproveitar dela para saciar os seus desejos, mas preferiu nutrir sentimentos tolos. Quando for a hora, lembre-se das conseqüências!
Com as mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo, deu as costas ao filho, deixando para trás o eco de seus passos, que despertaram Brian da lembrança infeliz.


“Valentine precisa de mim!” Apesar da dificuldade em se concentrar, fechou os olhos e se pôs a escutar. Era o som do coração de Valentine que o permitia saber onde ela estava. A sensibilidade musical de seus ouvidos sempre o ajudava nessa hora. Aos poucos, conseguiu sintonizar aquela freqüência única. Mas dessa vez, não encontrou a vibração alegre e cheia de energia. Apenas um bater pausado, leve, monótono. Novamente, o desespero tomou conta dele e quase quebrou a conexão. “Espere, meu amor, estou chegando...”

Correu o máximo que pôde em cima da plataforma do telhado e lançou-se no ar, sem hesitação. Antes de começar a cair, ganhou a forma do corvo negro, batendo asas rapidamente. “Pelo menos isso, meu pai me deixou de bom”, pensou num suspiro... Conseguiu chegar antes de qualquer socorro. Forçou a porta amassada do carro e encontrou Valentine. Mesmo pálida, com a respiração muito leve, a bruxa parecia encantadora.

Brian sabia que se a ajudasse, estaria um pouco mais distante desse mundo e da sua vontade de ser uma pessoa normal. “Não posso deixá-la morrer. Não agora!” Sem pensar mais, encostou sua mão fria na dela. Nesse momento, um tipo de raio veio do alto em direção ao casal, fazendo Brian tremer. Desacordado, o corpo de Valentine sentiu o solavanco. Aos poucos, sua respiração ficou mais forte. - Aguente firme, minha querida. Em breve, o socorro chegará! Olhando ao redor, bateu as asas e voou para longe, antes que pudesse ser visto.

Entre a vida e a morte, Valentine sonhava. Ao longe, uma voz de menina se fazia ouvir. A luz do sol fazia brilhar os cabelos vermelhos da menininha de rosto sardento e alegre. Ela caminhava por uma estrada de terra, segurando sua boneca de pano pela mão. Cantarolava uma canção que sua mãe lhe ensinara:

“Se essa rua, se essa rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante
Para o meu, para o meu amor passar...

Nessa rua, nessa rua tem um bosque
Que se chama, que se chama solidão
Dentro dele, dentro dele mora um anjo
Que roubou, que roubou meu coração...”

Em sua imaginação infantil, Valentine olhava para o bosque que margeava a estrada, a procura do anjo que roubaria seu coração. Do alto de uma árvore, o anjo negro a observava. No sonho, a bruxa reconheceu seus olhos azuis e, na cama do hospital, pela primeira vez depois do acidente, esboçou um sorriso.