quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A armadilha (capítulo 9)

Meses se passaram e, noite após noite, Cassiana vagava por seus sonhos, à procura de seu amante onírico. Passou a ter visões desconexas, um mundo sombrio que aparecia ao longe e depois dissipava em denso nevoeiro. Acordava sufocando de saudades e ardendo em desejo. Seus olhos já não tinham o mesmo brilho, parecia não gostar tanto da vida como antes. Queria apenas partir e ficar ao lado daquele que se apossou de sua alma.

Ângelo, noivo de Cassiana, percebeu que algo afligia o coração de sua amada. Pensava que eram os longos períodos de solidão em meio à floresta. Preparou então uma surpresa para ela.

- Vamos, quero te mostrar um lugar!
- Desculpe, querido, não me sinto disposta. Tenho um cansaço que me consome. Quero apenas ficar aqui e adormecer.
- Tenho certeza de que você vai gostar. Vamos cavalgar um pouco, como fazíamos antes. Prometo que você não vai se cansar, meu amor!

Quase que por uma obrigação, Cassiana levantou-se para atender ao pedido do noivo. Apesar de tudo, ele era um homem por quem ela tinha grande afeição. Não queria magoá-lo e sabia que não era justa a forma como vinha o tratando ultimamente. O trote do cavalo aos poucos, foi acalmando seu coração. As paisagens passando lentamente por seus olhos, o vento acariciando os cabelos soltos... tudo isso a fez lembrar do tempo em que era simplesmente feliz, sem a ânsia de reencontrar aquele que nem era do seu mundo e que talvez nem existisse realmente. “Foi apenas um sonho...” tentava se conformar. Ângelo, vez ou outra, fazia algum comentário ou pergunta, tentando desvendar o que ia ao íntimo de sua amada e tinha como resposta, vagas palavras. De repente, o caminho se estreitou entre pedras enormes que escondiam o que havia do outro lado.

- Vamos ter que seguir a pé. É só um pequeno trecho”, disse Ângelo. Cassiana se perguntava como não conhecia ainda aquele lugar. O céu estava incrivelmente azul e o clima ameno tornava o passeio ainda mais agradável. A cada passo, um novo cenário era pintado diante de seus olhos. Borboletas azuis e amarelas rodeavam pequenas flores silvestres. As raízes das árvores, tortuosas e gigantescas, eram algo que impressionava seus olhos. Aos poucos, um ruído de água começou a ser ouvido. À medida que caminhavam, o barulho aumentava. As folhas sob os pés foram ficando mais úmidas e escuras, exalando um delicioso cheiro de terra molhada.

Ao passar pelo último paredão de pedras, Cassiana não pôde conter a expressão de surpresa quando se deparou com a Cachoeira do Espelho. Um imenso véu branco desaguava no lago de fundo negro que refletia a imagem da mata ao seu redor e o profundo azul celeste. Ângelo sorria, convidando-a para um refrescante mergulho. Sob o encantamento daquele lugar mágico, Cassiana se deixou levar pela mão, molhando os pés na água translúcida. Um leve arrepio percorreu-lhe a espinha, trazendo novamente a sensação de estar viva.

Aos poucos, soltou seu corpo na água e ficou a boiar, olhando para o céu. Chegou a sorrir, deixando as águas levarem seus pensamentos para longe. Foi então que viu um grande pássaro preto cruzar o céu e pousar numa árvore à beira do lago. Uma estranha sensação apertou-lhe o peito e ele se levantou, procurando com os olhos, seu noivo.

- “Estou aqui, meu bem!” Cassiana virou-se bruscamente na direção da voz. Quando seus olhos encontraram os de Ângelo, a moça percebeu neles um brilho diferente, mas familiar. Sem ter tempo de esboçar reação, o homem tomou-lhe nos braços e beijou-a com intensa paixão. Ela reconheceu aquele beijo e lembrou-se na hora do sonho que tivera meses atrás. Afastou-se e tentou dizer algo, mas tocando seus lábios suavemente, o rapaz a impediu de pronunciar seu nome, sob o risco de acordar Ângelo de seu encantamento.

O sonho e a realidade se misturavam em um êxtase atordoante. Cassiana estava confusa, mas não conseguia resistir às carícias e à força daquela atração. Ângelo não tinha a mesma feição, parecia estar fora de si. Ela sentiu uma leve tontura, fechou os olhos por um momento, enquanto o homem a segurava nos braços. Ao abrir os olhos novamente, notou que toda a paisagem estava modificada, as cores eram mais nítidas do que antes, a água agora parecia fazer parte de seu próprio corpo, o céu tinha um tom azul fora do comum, não era noite e nem era dia. Ainda assim, podia ver uma imensa lua no céu que parecia enviar-lhe algum tipo de energia.

Sentiu todo o seu corpo esquentar e um desejo incontrolável apoderar-se de si. Cassiana estava radiante, seus olhos de bruxa faíscavam de prazer, segurou delicadamente o rosto de seu amado e o beijou profundamente. Suas mãos percorriam o corpo dele e lentamente tiravam-lhe a camisa, as unhas percorriam seu peito, nu provocando-lhe arrepios. Cassiana afastou-se um pouco e olhando diretamente para os olhos dele, despiu-se. Suas formas perfeitas o hipnotizavam, ele a desejava, e isso causou-lhe um certo temor, sentia que precisava dela mais do que podia querer.

A bruxa se aproximou, segurou em suas mãos e o levou até a margem do lago, despiu-o e o fez deitar-se no chão de terra úmida, as plantas ao redor exalavam um delicioso aroma verde, ela sentou-se sobre seu corpo e com as mãos levantadas em direção à lua fechou os olhos pedindo algo. Seu corpo estava quente como o fogo, as mãos de seu amante percorriam cada centímetro daquele templo do prazer. Cassiana abaixou os braços e tocou de leve o rosto do homem que se deixava dominar pela Deusa, inebriado pela paixão.

Seus corpos nus estavam em êxtase profundo, o ciclo quase completo e então a sensação de plenitude dominou seus corpos. Ela movimentava-se como uma Valkíria, cavalgando pelas nuvens. As mãos dele acariciavam seus seios provocando-lhe arrepios e gemidos que ecoavam pelo bosque. Estavam num transe quase absoluto, e num momento de puro prazer, chegaram ao climax juntos.

Cassiana deitou-se no peito dele, exaurida pela intensidade daquele amor. De olhos fechados, teve uma estranha impressão. Parecia que podia ouvir dois corações. Um vivo e pulsante, outro frio e impiedoso. De qualquer forma, um coração que nunca seria seu. Então, um abismo se abriu sob seu corpo e ela sentiu que caia, vertiginosamente. Abriu os olhos e a paisagem voltou a ser o que era. O homem a olhou nos olhos e, com a arrogância que era própria de Lucius disse:

- Já consegui o que queria, minha querida Cassiana. De agora em diante, apenas observarei, e quando eu voltar será para buscar a semente que agora germina em teu ventre.

Com um sorriso diabólico nos lábios, deixou o corpo de Ângelo que caiu no chão desmaiado. Cassiana sentou-se ao lado do noivo e arrependida de ter se deixado seduzir, chorou. Não havia mais volta, ela estava amaldiçoada para sempre, e agora uma criança pagaria por tudo isso.

Depois de algum tempo, Ângelo acordou às margens do rio. Cassiana estava um pouco distante dele. Ainda trôpego de sono, aproximou-se dela e abraçou-a por trás.

- Desculpe, querida, não sei o que houve comigo. Adormeci sem perceber. Acho que o passeio me cansou um pouco.

Ao perceber que o noivo não se lembrava de nada do que ocorreu, Cassiana disfarçou as lágrimas, enxugando-as com as mãos e tentou sorrir.

- Não se preocupe, estou bem. Gostaria apenas de ir para a casa agora.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O plano de Lucius (capítulo 8)

Lord Lucius Stirb Nicht era o maioral de sua falange na Esfera das Sombras. Mas as coisas nem sempre foram assim. Em lugares como esse, a força era a única forma de garantir um lugar no topo. Quem não conseguia se sobressair e dominar, era submetido à escravidão, acorrentado aos desejos de seus superiores, vendendo-se fácil por um pouco de prazer.

A Esfera das Sombras era uma dimensão muito próxima da Esfera Terrestre. A força era mantida por uma egrégora de sentimentos baixos ou inferiores. O ódio, a ganância, o egoísmo, a inveja, os vícios e a energia sexual doentia eram o alimento que mantinha a atmosfera ideal e a sobrevivência daquele mundo. É por isso que aqueles seres amavam tanto os homens. A existência daquele mundo dependia das emoções fartamente cultivadas pela humanidade em uma sociedade cada vez mais individualista. Os seres sombrios fingiam prestar favores aos homens, influenciando-os a praticar atos que fizessem crescer a energia negativa da qual dependiam. E os humanos, em seus medíocres intentos, ainda pensavam dominar as forças sombrias.

Lucius tinha um plano ambicioso. Queria concretizar a criação de um ser, metade homem, metade sombrio. Ele seria ao mesmo tempo, uma entidade cheia de poderes e um humano-fonte de energia. Sugaria a essência humana em sua plenitude e levaria ao seu mundo os fluídos corpóreos tão desejados naquela dimensão. Um experimento que desafiaria a tola ciência terrestre e também as leis do universo.

O lord estava acostumado a se relacionar com espíritos de mulheres que se desdobravam em sonho para ter com ele, momentos de prazer extra-sensorial. Ele tinha o poder de plasmar a figura que melhor lhe conviesse, tornando-se atraente para as suas vítimas. Algumas delas iam por sua própria vontade, outras, inconscientes, eram atraídas como mariposas à luz, sem perceber que estavam tendo sua energia vital drenada pelo vampiresco ser.

A mãe de Brian era uma mulher dotada de certos dons que permitiam a ela, fazer fabulosas viagens astrais. Quando se deitava para dormir, ansiava por conhecer outras dimensões. Foi em um desses passeios, andando na planície esverdeada de um campo, que ela avistou pela primeira vez aquele que seria o seu amado e a sua perdição, a pior desilusão, o sonho que acabaria com a felicidade de seus dias.

Sentado sobre um manto ricamente adornado no alto da colina, Lucius sustentava a postura de um Rei. Mantinha o olhar perdido no horizonte, onde se via a silhueta de uma vila coroada por nuvens de chumbo. Relâmpagos que vez ou outra, iluminavam tudo ao redor, mas ali onde estavam, acima de suas cabeças todas as constelações queriam brilhar. O homem bebia numa taça de ouro o prazer sensual de um bom vinho.

Cassiana, ao longe, observava aquele homem que era a materialização de todos os seus mais secretos desejos. Livre, seu espírito não necessitava das amarras sociais que a impediriam de se aproximar dele. Ao pensar nisso, instantaneamente, já estava lá, partilhando com ele a taça de ouro e trocando olhares que diziam tudo sem precisar abrir a boca. Foi ali, tendo a lua crescente como testemunha, que seu coração se acorrentou ao ser que traria a luz e as trevas para o resto de sua existência.

No manto negro da noite salpicada de estrelas de prata, seus corpos se uniram em perfeita conjunção astral. As mãos de Cassiana deslizavam pelas costas de seu amante desconhecido, sentindo o estranho calor de seu corpo. Segurando os longos cabelos negros entre os dedos, Lucius beijava sua boca demoradamente, saboreando a energia imaculada da mulher, que tremia de desejo. Ele tocava seus seios vestidos de luar, como quem venera a perfeição. Ao inspirar o ar fresco daquela noite mágica, ela se transformou em Deusa cortejando seu consorte. Sabia que guardava em si o poder, algo que ele desejava e que ela estava disposta a entregar.

Foi assim, sem pressa, da mais cuidadosa e gentil maneira, que o ardiloso ser das trevas possuiu a alma de Cassiana. Mas naquela noite, entregue ao torpor dos desejos saciados, ela deixou-se adormecer nos braços de seu algoz com a paz que experimenta uma mulher plenamente satisfeita.

O dia amanheceu como se aquela noite não tivesse acontecido. Cassiana acordou em sua cama, sentindo a cabeça girar. Levantou-se e uma vertigem a obrigou a se sentar novamente. Estava cansada; tinha a impressão de que fechou os olhos nos braços de Lucius e acordou em seu quarto no mesmo instante. “Devo estar ficando louca. Nunca tinha vivido uma experiência como esta!” Do alto de sua torre na Esfera das Sombras, Lucius sorria vitoriosamente. A semente estava lançada no coração de Cassiana. Agora, só faltava plantá-la em seu ventre.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Um encontro inesperado (capítulo 7)

Num lugar muito distante do presente mundo de Valentine, onde o céu era de um azul esverdeado e cheio de limbo, onde o chão escurecido dava a impressão de areia movediça e um forte nevoeiro cobria tudo como um espesso véu, Brian tentava se concentrar nas batidas do coração de sua amada.

Deitado no chão podia sentir suas forças desaparecendo juntamente com o som que tantas vezes o levou de encontro à garota que precisava proteger. Estava com a boca seca e a visão turva, sentia-se desaparecendo, detestava aquele lugar, mas agora sabia que estava mais perto de ter que viver ali para sempre. Fechou os olhos, não podia se desconcentrar, precisava ficar atento, mas estava difícil manter-se focado em algo, sentiu um peso sobre o peito e depois uma sensação de sufoco, perdeu a consciência e caiu num sono profundo.


Brian tinha acabado de abrir os olhos e notou que o ambiente estava todo mergulhado numa luz dourada cintilante que cresceu e depois se apagou. Focalizou melhor a silhueta à sua frente, a imagem foi ficando mais nítida e então a surpresa o fez quase cair da cama em que estava.
- Ma... mas o que é isso??- afastou-se meio cambaleante e ficou encostado na parede olhando para a velha senhora que sorria alegre para ele.

- Que modos são esses rapaz? Até parece que viu um fantasma.- a velha deu de ombros e foi em direção à cozinha enquanto cantava algo que Brian não entendeu.
Brian se levantou, ainda zonzo, haviam passado cinco semanas desde que perdeu os sentidos. Ele caminhou lentamente até a cozinha, apoiou-se na porta e ficou a observar aquela senhora tão alegre que dançava enquanto cozinhava algo.

A senhora virou-se abruptamente encarando o rapaz.
- E então meu querido, passou o susto?- olhava para ele com ternura.
-Eu não entendo...- Brian tinha impressão de que tudo aquilo era um sonho.
- Sim, você tem razão em achar que é um sonho. Se parece, é porque é. – agora ela o arrastava pelas mãos levando-o até a varanda da casa.

Brian ficou ainda mais assustado. Como ela conseguia saber o que ele pensava?
- Elementar meu caro ou devo dizer Elemental? Disse a velha, soltando uma gargalhada.
O rapaz se sentia meio tolo, não gostava de ser feito de bobo.
- Como pode estar aqui se você morreu?
- Ora, ora, eu lhe pareço morta por acaso?
- Não, mas...
-Pois então? Como pode me fazer uma pergunta boba dessas? Ainda mais você Brian!?
- É que eu não esperava te encontrar, não ainda.
- Deixe de conversa, você sempre soube que eu era a guardiã de Valentine.
-Sim, mas achei que vocês, “guardiões” não podiam aparecer para qualquer um.

Neste ponto a velha desatou a rir, chegou a soluçar de tanto que riu. Brian fez cara de bravo e emburrou.
- Me perdoe criança, mas é que você ainda vai me matar de rir com esta sua mania de se achar “qualquer um”.
Brian deu de ombros e sentou-se na cadeira que estava na varanda, olhou a paisagem e viu que cada detalhe era mais nítido do que estava acostumado, o céu tinha uma cor azul que descia num degradê rosa sempre mudando de posição, a energia do local era muito intensa e se oferecia a ele de uma forma quase que submissa, ele não precisava tomá-la para si.
- Onde estamos?- perguntou ainda maravilhado com tudo o que sentia naquele lugar.
- Aqui é o meu mundo.- respondeu enquanto se acomodava ao lado dele.
-Porque me trouxe aqui?- uma grande tristeza o invadiu ao pensar em Valentine, sentia que estava muito longe dela, não ouvia seu coração bater e nem sentia suas vibrações aconchegantes.
- Não se preocupe, eu apenas bloqueei teus sentidos, você não está tão longe assim de Valentine.

Brian olhou para ela e ficou esperando detalhes. A velha recostou-se na cadeira e depois de um longo suspiro falou:
- Brian, vocês estão chegando ao fim de um ciclo, precisei interferir porque seu pai se meteu entre vocês dois e está atrasando o fechamento desta busca. Não posso permitir que mais uma vez ele defina o rumo das coisas, não desta vez... Também não tenho muito tempo por aqui como guardiã de Valentine. Logo terei de partir para outros lugares, tudo o que eu podia fazer eu tenho feito, até mesmo encarnar como avó dela eu encarnei, mas agora não temos muito tempo e eu não posso interferir nas escolhas, posso apenas mostrar-lhe o caminho, mas somente ela poderá decidir como e quando seguir.

Brian levantou-se, sentia-se renovado, a energia que recebia daquele local o havia refeito. Olhou para o horizonte, uma nuvem solitária seguia lentamente pelo céu multicor, agora os raios de um sol em despedida pintavam tons alaranjados sobre a tela rosa e azul que era aquele céu. Suspirou resignado, não sabia o que fazer.

-Hoje estive com ela, sem que soubesse, dei-lhe uma visão importante, confio na capacidade de Valentine e tenho certeza de que ela irá desvendar todos esses segredos e em breve você estará livre meu garoto. A velha abraçou Brian e beijou-lhe a face. Uma luz dourada iluminou todo o ambiente e o envolveu, ele fechou os olhos e quando abriu já estava sobre o telhado da velha fábrica.

A lua estava linda no céu negro daquela noite tão estrelada, respirou o ar puro e fresco, sentiu seu corpo todo arrepiar-se ao receber a energia que Valentine lhe enviava sempre que pensava nele, sorriu satisfeito quando começou a ouvir seu coração pulsante, e colocou-se a correr sob o telhado transformando-se num corvo e seguindo aquele som maravilhoso, o som da vida, o som que vinha de seu amor eterno!

Em casa, Valentine revirava as gavetas, nervosa já havia feito a maior bagunça por todos os cômodos e não tinha encontrado nada. Sentou-se no chão com a cabeça entre as mãos, estava furiosa por não ter guardado num lugar mais fácil de encontrar, já ia desistir quando uma imagem apareceu em sua mente. “O baú da vovó!”
Correu pelo corredor e num único puxão fez com que as escadas do sótão descessem. Subiu às pressas, lá em cima acendeu a luz fraca e avistou o baú empoeirado perto da janela, correu até ele com o coração aos pulos, abriu e no fundo dele encontrou o recorte amassado, aproximou-o e verificou que era a mesma construção, olhou para o homem da foto, a respiração pareceu falhar.
- Não pode ser...
Aproximou o recorte da luz e ao olhar melhor para o homem sentiu suas pernas tremerem, uma sensação de angústia a fez deixar cair o recorte e levando a mão ao rosto sussurrou:
- O homem da capa preta...aquele horrível homem...

Mais descobertas (capítulo 6)

Sete dias depois de ter dado entrada no hospital, nenhum familiar tinha procurado Valentine. As enfermeiras se perguntavam quem poderia ser aquela moça tão bela e misteriosa. Desde que chegou, dormia um sono profundo, sem se dar conta dos ferimentos em sua pele. O traumatismo e o inchaço na cabeça regrediam a cada dia, mas ela não acordava.

Foi então que apareceu uma mulher à sua procura. Ela disse que se chamava Triskelle e que era tia de Valentine. Dona de um olhar altivo e hipnotizante, Triskelle era capaz de convencer qualquer pessoa daquilo que dizia, portanto, em poucos minutos, ela já estava dentro do quarto, a sós com a jovem bruxa. Ao chegar à beira da cama, olhou com ternura para a garota. Tocou e leve a sua face, balbuciando palavras inaudíveis. De repente, uma luz flamejante tomou o seu olhar. Triskelle pegou na mão de Valentine e num tom imperativo, disse:

- Rowenah, ordeno que volte! Ainda não é hora de partir!

Lá no fundo de sua consciência, Valentine ouviu alguém pronunciar seu nome mágico. A voz parecia distante, muito além de seu alcance. Queria responder, mas a fala não saia de sua boca. Depois de ficar ali por alguns minutos, Triskelle tocou a testa da bruxa e traçou com o dedo um pentagrama entre as sobrancelhas. Saiu do quarto, deixando pelos corredores o rastro de fogo dos seus cabelos e da sua presença marcante, quase sobrenatural. No dia seguinte, Valentine despertou, procurando entender onde estava. Tentou se mover, mas então, deparou-se com a dor. Ergueu lentamente a mão e tocou a cabeça ainda enfaixada. Nesse momento, lembrou-se do acidente.

- “Valentine, você acordou!” Uma enfermeira adentrou o quarto para ministrar-lhe os medicamentos e espantou-se com a novidade.

- Há quanto tempo estou aqui?

- Ontem completou uma semana. Sua tia veio visitá-la.

Mesmo estranhando a afirmação da enfermeira. Guardou para si a indagação. “Quem poderia ter-se feito passar por minha tia?!” de repente, veia à tona em sua memória o chamado que ouvira na noite anterior. “Ninguém conhecia seu nome mágico, senão... Triskelle!! Não pode ser!”A face da moça empalideceu subitamente. Percebendo a perturbação da menina, a enfermeira tratou de deixá-la à vontade.

- “Descanse um pouco. Em breve um médico virá vê-la. Estou feliz por você ter acordado. Meu nome é Irene. Se precisar de algo, é só apertar esta campainha.” Sorriu gentilmente e saiu, levando consigo a bandeja de medicamentos.

Valentine estava agora a sós com seus pensamentos. Fragmentos de lembranças iam e vinham, trazendo um sentimento de desespero. O ritual, a visão, o acidente e Brian; sempre Brian... a moça fechou os olhos e, em flashes, viu-se desacordada no carro, um pássaro negro pousado na árvore e Brian ajoelhado ao seu lado. Lembrou da descarga elétrica que sentiu quando ele tocou sua mão.

“Terá sido um sonho?!” Apesar de tantas visões e encontros, os dois nunca haviam se tocado realmente. Sentiu Brian limpar carinhosamente o sangue que escorria de sua testa e leva-lo à boca, como quem quisesse sorver toda a sua dor. Sem perceber, Valentine deixou as lágrimas caírem dos olhos e soube. Tinha acontecido de verdade.

Passaram-se duas semanas, Valentine havia voltado à sua vida normal após o acidente, sempre pensando em Brian. Tinha a impressão de que talvez ele tivesse ido embora da cidade, mas não o culpava por isso, se pudesse faria o mesmo. Ela tinha dúvidas a respeito de todo o ocorrido na noite do ritual, algumas vezes chegou a pensar que fossem coisas de sua imaginação, e as vezes achava que talvez sua avó tivesse colocado algum tipo de encanto no espelho para que ao usá-lo visse tudo o que viu.

O fato era que, desde aquela noite ela não parava de ter sonhos estranhos, sempre com sua avó ou Brian, em alguns deles o horrível homem de capa preta aparecia sorrindo com uma expressão demoníaca, a música que tantas vezes cantou em sua infância não saía de sua cabeça, como se quisesse lhe mostrar algo, como se fosse algum tipo de mensagem subliminar. À noite Valentine se sentava na varanda de sua casa e passava horas registrando e relendo tudo o que havia sonhado, algumas coincidências que haviam ocorrido durante o dia e também várias intuições que lhe vinham à mente.

Numa noite clara e fresca, Valentine resolveu dar uma volta pelo bairro, pensativa e absorvida por seus pensamentos não percebeu que caminhava em direção a uma parte afastada de seu bairro, um local imenso com algumas arvores salpicadas e uma enorme construção abandonada, parou surpresa quando notou o quanto havia caminhado sem se dar conta. sussurrou para si enquanto ria encabulada, já ia dando meia volta quando algo lhe chamou a atenção, a lua iluminava em cheio uma imensa árvore ao lado da construção, ela parecia ter mais de cem anos, suas enormes raízes chegavam a ser macabras de tão grossas e entrelaçadas.

Valentine sentiu uma leve tontura e teve que ajoelhar-se no chão para não cair, abriu os olhos e sentiu um gosto estranho na boca, uma mistura de cedro com âmbar, olhou para o chão e viu que uma estradinha com pequenas pedrinhas iam até o pé da árvore, com o coração acelerado Valentine olhava paralisada para a árvore enquanto a velha canção voltava à seus ouvidos.
“...Se essa rua, se essa rua fosse minha...”

A paisagem começou a mudar diante de seus olhos e então viu-se no mesmo local daquele estranho sonho. Haviam muitas árvores, a construção tinha desaparecido e bem ao fundo a enorme árvore reluzia uma luz sobrenatural. Ao lembrar-se dos olhos azuis sentiu a vista escurecer e então toda a paisagem se desfez tão rápido quando havia surgido, mas então, lembrou-se de quando Brian a procurou na biblioteca com o recorte de jornal, não havia dado muita importância naquele momento, mas agora podia ver nitidamente, quando ele havia apontado para a pessoa que queria encontrar, viu atrás dessa pessoa a “Construção” que agora estava diante dela.

As coisas pareciam começar a fazer sentido e sabia que só precisava juntar as peças deste enorme quebra-cabeças. Levantou-se e correu para casa, tinha guardado o recorte como uma lembrança daquela mágica tarde em que seu sonho se tornou real, só precisava se lembrar onde. Assim que Valentine se afastou um brilho dourado cintilante manifestou-se no alto da imensa árvore e sumiu no ar.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Fatalidades (capítulo 5)

Desacordada, Valentine ficou, até que um bando de periquitos cruzou o céu numa alegre tagarelice matinal. Abriu os olhos sem entender bem onde estava. A cabeça doía. Lembrou-se do ritual. Um frio lhe percorreu a espinha ao lembrar da última visão. Olhou ao redor em busca do espelho. “Sumiu!”

A lembrança do ocorrido a fez estremecer. Um misto de tontura e pavor a fizeram caminhar aos tropeços até o carro, que estava parado a alguns metros dali. Buscou a chave apressadamente dentro da bolsa e entrou. Olhou pelo retrovisor para dar a ré e viu, atrás de seu carro, o mesmo homem da capa preta que atacou Brian, em sua visão do espelho. Não pôde conter o grito de terror, levando as mãos instintivamente aos olhos.

Ficou assim por alguns instantes, paralisada de medo, sem coragem de olhar de novo. O grito deu lugar ao silêncio. Apenas os sons da respiração e do coração dela, batendo feito tambor por debaixo da pele tomavam conta do ambiente. “Preciso sair daqui” A voz interna a tirou do estado catatônico para a realidade, como um soco na face. Então, ela abriu os olhos e desviou o olhar do espelho, virando o corpo para olhar atrás. Nada. O sol brilhava, banhando as folhas de luz, suavemente.

Deu a partida e se foi, dirigindo mecanicamente, com os pensamentos voando a 120km/h. “Quem teria levado o espelho? Quem era aquela criatura horripilante? Por que o homem da capa estava atrás dela? E talvez, a mais angustiante das perguntas: “Onde está Brian nesse momento? Será que ele está bem??”

A mente percorria todas as possibilidades em um turbilhão atordoante. Valentine não queria mais pensar, mas também não conseguia esquecer. Um forte enjoo tomou conta dela e a vista se turvou. Sem perceber, deixou o carro invadir a pista contrária e cruzou o acostamento. Quando um fio de lucidez a fez afundar o pé no freio, já era tarde. Teve apenas o tempo de sentir o chão sumindo sob as rodas do carro, os segundos de queda livre, o gelo na barriga e a violenta pancada no chão. O carro ainda andou alguns metros com certa velocidade, até parar bruscamente ao encontrar uma árvore. Então, tudo se apagou.

Brian, no ponto mais alto do telhado da fábrica, tragava seu cigarro, como se a fumaça lhe trouxesse à tona as lembranças. Depois das visões no espelho, procurava saborear o passado, reviver o tempo em que era feliz, livre daquela maldição. Quanto tempo havia se passado desde então? Às vezes, conseguia lembrar tão nitidamente que parecia ontem. Mas então, o hoje se tornava tão esmagadoramente pesado, que aquele tempo bom já não era nem mais essa vida, tinha ficado perdido em algum lugar muito, muito distante.

Nesse momento, sentiu seu coração apertar. Uma saudade infinita da mãe, o sorriso da doce Sofia, os olhos bruxescos de... Valentine! Quando o olhar de sua amada lhe invadiu o pensamento, o rapaz levou um choque. Subitamente, uma pontada dentro da cabeça o fez gritar. Fechou os olhos com força e viu a imagem do carro descendo o barranco, o rosto ensanguentado de Valentine.

“Não, não pode ser!” Levou as mãos na cabeça em um gesto de desespero. Lembrou da ameaça do pai:

- Se você insistir em procurá-la, quem levará a pior será ela! Você precisa entender que já não faz parte daquele mundo. Seu lugar é aqui, junto de seu pai, para cumprir o destino da nossa família! O amor é um sentimento que nos distancia e impede de chegar onde queremos. Enquanto você insistir em viver aquela vidinha que levava junto à sua mãe, verá as pessoas à sua volta caindo, uma a uma, sofrendo as conseqüências da sua fraqueza. Deixe de vez essa matéria que não lhe pertence mais e tanto te limita na busca de nossos objetivos!
Nesse ponto, Brian não se conteve mais. Aos berros, despejou todo o rancor guardado em seu coração.


- Os seus objetivos nunca foram os meus e nunca serão! Você tem apenas metade do domínio sobre minha vida. Minha mãe me deixou de herança, além do caráter, a chave do portal entre os mundos e, enquanto eu puder, lutarei pela liberdade de minha alma. Assim como eu sou obrigado a voltar todos os dias para esse inferno que você chama de lar, dou-me ao direito de ir para onde quiser no tempo que me pertence. Será bem mais fácil você desistir de me usar para seu jogo sujo do que eu me dobrar às suas vontades.

Impassível, com um leve sorriso de deboche no rosto, Lucius ouvia o filho falar de seus sentimentos como uma criança que não sabe o que diz.

- A escolha é sua, meu filho! Você poderia simplesmente se aproveitar dela para saciar os seus desejos, mas preferiu nutrir sentimentos tolos. Quando for a hora, lembre-se das conseqüências!
Com as mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo, deu as costas ao filho, deixando para trás o eco de seus passos, que despertaram Brian da lembrança infeliz.


“Valentine precisa de mim!” Apesar da dificuldade em se concentrar, fechou os olhos e se pôs a escutar. Era o som do coração de Valentine que o permitia saber onde ela estava. A sensibilidade musical de seus ouvidos sempre o ajudava nessa hora. Aos poucos, conseguiu sintonizar aquela freqüência única. Mas dessa vez, não encontrou a vibração alegre e cheia de energia. Apenas um bater pausado, leve, monótono. Novamente, o desespero tomou conta dele e quase quebrou a conexão. “Espere, meu amor, estou chegando...”

Correu o máximo que pôde em cima da plataforma do telhado e lançou-se no ar, sem hesitação. Antes de começar a cair, ganhou a forma do corvo negro, batendo asas rapidamente. “Pelo menos isso, meu pai me deixou de bom”, pensou num suspiro... Conseguiu chegar antes de qualquer socorro. Forçou a porta amassada do carro e encontrou Valentine. Mesmo pálida, com a respiração muito leve, a bruxa parecia encantadora.

Brian sabia que se a ajudasse, estaria um pouco mais distante desse mundo e da sua vontade de ser uma pessoa normal. “Não posso deixá-la morrer. Não agora!” Sem pensar mais, encostou sua mão fria na dela. Nesse momento, um tipo de raio veio do alto em direção ao casal, fazendo Brian tremer. Desacordado, o corpo de Valentine sentiu o solavanco. Aos poucos, sua respiração ficou mais forte. - Aguente firme, minha querida. Em breve, o socorro chegará! Olhando ao redor, bateu as asas e voou para longe, antes que pudesse ser visto.

Entre a vida e a morte, Valentine sonhava. Ao longe, uma voz de menina se fazia ouvir. A luz do sol fazia brilhar os cabelos vermelhos da menininha de rosto sardento e alegre. Ela caminhava por uma estrada de terra, segurando sua boneca de pano pela mão. Cantarolava uma canção que sua mãe lhe ensinara:

“Se essa rua, se essa rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante
Para o meu, para o meu amor passar...

Nessa rua, nessa rua tem um bosque
Que se chama, que se chama solidão
Dentro dele, dentro dele mora um anjo
Que roubou, que roubou meu coração...”

Em sua imaginação infantil, Valentine olhava para o bosque que margeava a estrada, a procura do anjo que roubaria seu coração. Do alto de uma árvore, o anjo negro a observava. No sonho, a bruxa reconheceu seus olhos azuis e, na cama do hospital, pela primeira vez depois do acidente, esboçou um sorriso.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O Espelho (capítulo 4)

Algum tempo se passou, sem que Valentine tivesse contato com Brian. Nem por sonhos, nem na vida cotidiana. Já tinha até mesmo dúvidas se aquele encontro na biblioteca havia mesmo acontecido. O mais incrível é que seu coração sentia uma saudade dolorida, como se alguém muito querido estivesse distante. Estaria apaixonada por um personagem de sonho?! “Só mesmo uma maluca como eu pra sentir um negócio desse!” Tentou espantar o baixo-astral tirando sarro de si mesma.

O dia de Samhain, considerado o Ano-Novo dos Bruxos, se aproximava e Valentine queria voltar a celebrar os ritos pagãos. Pelo menos assim, não se sentia tão só. Os rituais eram sempre um bom pretexto para celebrar a vida, fazer contato com os Deuses e, quem sabe, tomar um pouco de vinho consagrado...

Valentine sabia que nesta noite especial, o véu entre os mundos ficava mais tênue, possibilitando o contato com os ancestrais. “Quem sabe hoje eu possa encontrar uma explicação para toda essa loucura”, pensou enquanto penteava os longos cabelos. Pouco a pouco, foi deixando de lado as preocupações, os problemas do trabalho, as contas a pagar. Ao colocar sobre o corpo nu banhado de ervas, sua roupa cerimonial, teve aquela sensação que há tanto tempo não sentia. Olhou-se no espelho e viu a Sacerdotisa que um dia fora, a filha e a serva da Deusa. Seus olhos delineados ganharam um brilho flamejante. Sim, ela ainda tinha um brilho de bruxa no olhar.

O Círculo Sagrado do Vale das Bromélias já estava todo iluminado por tochas. A vibração forte da magia podia ser sentida. O vento frio derrubava lentamente as folhas marrons das árvores, dando sinais de que o inverno estava cada vez mais próximo. Valentine caminhava lentamente, refletindo sobre o simbolismo daquela data. A morte do Rei, o lamento da Deusa, o período sombrio, os dias cada vez mais curtos, as longas e frias noites de inverno, a hibernação das plantas e dos animais e enfim, o renascimento. Ano Novo, Vida Nova... “que assim seja e assim se faça!”, pensou, num suspiro.

A fogueira no centro do círculo crepitava. Valentine descalçou os sapatos, pulou a vassoura de palha que servia como portal e entrou. O altar estava montado com os quatro elementos representados de forma simples. Um punhado de terra, uma vela vermelha, um cálice com água e um incensário. Pensando em seus ancenstrais, Valentine acendeu uma vela branca, colocou comidas e flores para homenageá-los.
Fechou os olhos, respirou fundo, buscou inspiração dentro de si. Respirando, logo se sentiu pronta para lançar o círculo de proteção. Ergueu os braços, visualizando uma grande bolha azul em torno de si, por onde o mal não poderia passar. Saudou os quatro quadrantes e convidou os ancestrais para participarem com ela daquele ritual.

Um leve torpor tomou conta da jovem bruxa. Imagens desconexas começavam a tomar conta de sua mente. Lembrou-se da infância. Do rosto de sua avó. Viu-se sentada ao lado dela, aprendendo a confeccionar uma boneca de pano e ouvindo os ensinamentos da magia. “Em cada laçada, uma inspiração. Siga o ritmo do seu coração. Veja seu intento realizado, em cada ponto amarrado.” Em seu anseio de menina, via-se pedalando uma bicicleta novinha, com o vento acariciando seu rosto sorridente. A imagem da infância se apagou.

Valentine se viu um pouco mais velha e de novo o rosto de sua avó, cansado, o olhar enfraquecido. “Minha filha querida, entrego meu dom a você...” estendendo suas mãos enrugadas, a velha entregou a Valentine um objeto embrulhado num pano de cetim preto. Pela janela entreaberta, a lua cheia assistia àquele momento. A menina, que acabara de completar 13 anos, desembrulhou o objeto e não pôde conter a surpresa.

Era um espelho de prata, todo trabalhado à mão e com um aspecto muito antigo. Sentiu um estranho calor em suas mãos. Olhou-se. A imagem oscilava, ora nítida, ora turva. Viu a luz da lua refletir no espelho e em seus olhos, viu-se mais velha. Uma mulher feita a contemplar-se no espelho. Assustou-se e cobriu a imagem. “Não posso aceitar!” A avó compreendia a imaturidade da menina, mas não havia mais tempo. “Querida, esse presente já é seu muito antes da sua chegada a esse mundo. Guarde-o e não deixe que ninguém além de você o toque!”

A lembrança dolorosa fez com que Valentine soluçasse involuntariamente. Abriu os olhos momentaneamente e voltou ao círculo. Fez o que a avó lhe pediu durante todos esses anos. Mas desde aquela visão, aos 16 anos, nunca mais teve coragem de encarar o espelho. Estava guardado em sua caixa mágica, embrulhado no mesmo pano preto, junto com as outras bugigangas místicas. Um ano antes da morte de seus pais, numa brincadeira, Valentine previu o terrível acidente dentro do espelho. Já tinha se esquecido da visão quando ela se concretizou.

Um sentimento de angústia apertou-lhe o peito. Ajoelhou-se num misto de solidão e tristeza. De repente, um vento gelado soprou e uivou. Uma chuva de folhas secas inundou o círculo mágico. Uma imagem invadiu sua mente como um punhal que atravessa o coração: os olhos de Brian em seu azul mais profundo. Valentine gritou. Já não sabia se a voz tinha mesmo saído ou se era sua alma que estava gritando.

Colocou a mão no chão, tentou se equilibrar. Viu a caixa à sua frente. Tremia. Abriu-a lentamente. Embora estivesse escuro, podia ver o espelho brilhando sob o pano. Embora o medo lhe atormentasse, suas mãos ansiosas buscaram o objeto mágico. Antes de abrir, pensou mais um pouco. “Será?!” Os dedos descobriam o espelho sem dar atenção aos seus pensamentos. Olhou. Novamente, a luz da lua se refletia com uma aura azul.

Viu seu rosto ainda transtornado, desaparecendo aos poucos. A luz da lua deu lugar à escuridão. Nuvens negras e densas passavam dentro do espelho. Viu um homem caído no chão, numa pequena clareira da densa floresta. Lobos o cercavam. Um filete de sangue escorria de sua boca. Brian! O grito ecoou na visão de Valentine. Se por um lado não sabia se queria continuar a ver, a saudade de seu amado e o mistério acerca dele a fizeram prosseguir na visão.

Tentou se aproximar para ver o que acontecia com o rapaz. Percebeu que era também uma imagem do passado. Brian ainda não apresentava os traços másculos atuais, era quase um menino! Demorou-se um pouco naquela visão, como quem vela o sono da pessoa amada. Foi quando percebeu um ruído de folhas se movendo e viu um vulto. Teve tempo apenas de ver um homem de capa preta, sumindo na escuridão que aos poucos tomou conta do espelho novamente.

Valentine continuou a olhar, queria agora saber mais. A bruxa posicionou o espelho de forma que a lua se refletisse novamente nele. Por detrás das nuvens, a Deusa parecia bailar uma pacífica e silenciosa canção. Aos poucos, uma nova imagem se formou. Brian, sozinho, sentado em uma pedra, abraçando as próprias pernas, olhando para o vazio. A barba por fazer deixava claro que aquele momento era atual. Seus olhos deixavam transparecer o que lhe ia na alma. O mesmo sentimento que tantas vezes Valentine experimentou, por outros motivos, em outros lugares: infinita tristeza e... solidão.

Ao longe, as batidas de um tambor começaram a ressoar. Primeiramente, um som monótono e bem marcado, aprofundando ainda mais o transe. Depois, outros instrumentos faziam-se ouvir, num ritmo vibrante e alegre. Palmas, gritos, risadas... Valentine começou a ver, no fundo do espelho, um ponto de luz. Era uma luz alaranjada, fora de foco. À medida que o som ficava mais alto, as imagens se definiam. O ponto de luz era uma fogueira que crepitava no centro de um grupo que conversava e dançava animadamente.

Entre todas as pessoas, Valentine percebeu uma moça de cabelos negros, muito bonita. Em seus olhos verdes, as chamas da fogueira brilhavam. Usava um vestido longo e decotado que valorizava suas formas. A moça batia os pés e as mãos vigorosamente, chamando para a dança um rapaz que estava sentado do outro lado da fogueira, saboreando uma taça de vinho e encarando-a com um leve sorriso de desejo. De repente, o rapaz sumiu, a moça girou em sua dança e deu de cara com ele. Todo o som silenciou, as pessoas sumiram. O momento suspenso, os olhos nos olhos, a respiração. Valentine sentia o que a moça sentia. Paixão!

Da mesma forma que a imagem surgiu, ela se distanciou, tornando-se apenas um ponto de luz e depois, novamente a escuridão. E dela, surgiu a imagem mais pavorosa que ela jamais pôde imaginar. Uma criatura das trevas, com olhos de fogo e afiados dentes de fera. Um rosto tão sinistro que saltou para fora do espelho e de forma ameaçadora, disse: “Fique longe dele!” O hálito quente e podre fez a sacerdotisa dar um salto para trás, jogando o espelho no chão.

Em outra parte da cidade Brian sentiu algo esquisito, como se uma força o chamasse.Desde a ultima vez que se encontrou com Valentine havia decidido ficar à uma distância mais segura, onde não a deixasse tão nervosa. Continuava a seguir todos os passos da garota, mas desta vez com cautela para não ser descoberto.

Brian ainda estava intrigado com o fato de pensar em Valentine e Sofia, como se fossem as mesmas garotas, era como se sua mente houvesse sido apagada desde o ultimo encontro com
Sofia naquela época tão distante.

A noite estava clara, a lua dominava todo o céu escuro, sentiu mais uma vez como se fosse chamado à algum lugar, não podia ficar parado, precisa descobrir o que era tudo isso e pôs-se a caminhar de encontro à energia tão forte que o direcionava.

Brian chegou no exato momento em que Valentine erguia os braços em direção à lua, ficou em silêncio atras de uma árvore observando tudo, a energia que emanava do corpo da garota o havia atraído até ali.

Não entendia porque a amava tanto, mas era muito bom, ficou alguns segundos olhando seus gestos tão precisos e todas as forças ali envolvidas, mas algo o tirou desta contemplação, e então um frio dentro do corpo o fez temer aquilo que via. Viu quando uma sombra esgueirou-se do outro lado de onde Valentine estava, ficou apreensivo.

Os olhos da criatura cintilaram quando valentine segurou algo em suas mãos, um espelho, Brian pôde sentir todo o ódio que emanava da criatura que parecia estar pronta para atacar a garota.
Brian nem teve tempo de agir, a fera tornou-se uma espessa fumaça e então desapareceu para logo depois sair de dentro do espelho jogando a garota no chão e fazendo-a desmaiar. Briian pulou de tras da árvore e correu na direção da garota, a criatura ameaçadora estava em pé olhando para ela e rindo diabolicamente enquanto segurava o espelho, Brian não teve dúvidas, e usando de todo o seu poder impôs as mãos sob as costas da criatura e emanou uma carga forte de energias que o fêz desaparecer trasnformado em varios corvos. Brian assustou-se e lembrou-se da visão, com seu pai.

O espelhoo caiu no chão e imediatamente Brian o recolheu e guardou consigo, abaixou-se e acariciou a face de Valentine, pensou em leva-la para dentro de casa mas não queria que ela soubesse que estivera ali naquela noite, e não pretendia devolver o espelho, não até descobrir porque o pai o desejava tanto.

Quando percebeu que Valentine acordava saiu e desapareceu enquanto caminhava em direção ao penhasco.

Brian sentou-se em uma pedra e em silêncio absorveu toda a energia daquele amanhecer, sentia-se revigorado diante de tão perfeita energia.

Olhou para o espelho mas não viu nada, a imagem parecia estar toda distorcida, afastou-o um pouco e então viu que seu medalhão refletia perfeitamente nele e com isso a imagem de seu rosto foi se tornando mais nitida e então tudo desapareceu antes que pudesse olhar melhor, mas deu lugar à uma outra imagem, pareciam cenas passadas, e então sumiram também mas antes uma enorme lua prateada tomou toda a face do espelho e o medalhão quase queimou seu peito de tão quente que ficou.

Guardou o espelho, pois havia entendido o recado.
Na noite daquele mesmo dia Brian subiu no telhado da velha fabrica, ali possicionou o espelho à sua frente onde pudesse receber a luz da lua e também refletir seu amuleto.

As primeiras imagens começaram a surgir, primeiro embaçadas e depois muito nitidas. Viu o belo rosto de Sofia e seu coração acelerou de forma absurda, neste ponto perdeu a concentração e a imagem sumiu.

Voltou a se concentrar e outras imagens foram surgindo, via um bosque, estava feliz, viu-se com uma garota, Sofia aparecia novamente, mas agora era diferente, estavam juntos, caminhavam felizes. Viu o olhar de medo da garota e então quando todo o boque pareceu entrar em uma escuridão ameaçadora, um denso nevoeiro os envolveu e então dois olhos de fogo brilharam na escuridão.Brian colocou-se a frente da garota para protegê-la, a terrível criatura se aproximava rápido e então parou a poucos passos do rapaz, neste momento Brian pôde ver suas feições, era aquele que dizia ser seu pai.

- Brian meu filho, é chegada a hora.- disse enquanto estendi os braços na direção do rapaz.
Brian o encarou sem medo e num tom agressivo disse:
-Do que fala? Se acha que vou me juntar a você pode esquecer, jamais serei como você seu monstro!

O Homem riu, sua risada ecoava pelo bosque, parecia a voz de mil demônios reunidos num só corpo.

Com apenas um movimento jogou Brian contra uma árvore, ele caiu meio atordoado, a criatura aproximou-se de Sofia e quando preparava-se para atacá-la Brian pulou por cima dele e começaram uma luta corpo a corpo, Brian deferiu diversos socos que não surtiram efeito algum sobre Lucius, cansado daquela cena patética Lucius o jogou longe com apenas um empurrão, voltou-se para Sofia e arreganhando os dentes foi para cima dela novamente, mas a garota não tinha mais medo e de dentro de seu decote um brilho azul começou a ficar cada vez mais intenso, tirou o amuleto para fora, algo que havia ganhado à muito tempo, e então Lucius afastou-se como se tivesse sido jogado para trás, com raiva deferiu um forte soco na cara de Brian que caiu no chão desacordado com os lábios sangrando.

A criatura abraçou o rapaz e disse antes de sumir junto com seu filho:

- Brian agora é meu, e você jamais voltará a encontrá-lo!!! Mantenha-se longe ou voltarei e acabarei com sua vida!

Sumiram numa densa nuvem negra feita de corvos, foi a ultima vez que Sofia viu Brian.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Memórias de Brian (capítulo 3)

Brian deixou o bar duas horas depois, ainda estava pensativo com aquela aparição de Valentine. Seguiu pela rua escura até uma pequena fábrica abandonada e subindo as deterioradas escadas chegou facilmente ao telhado, sentou-se e acendeu um cigarro –Maldito vicio!- praguejou enquanto deitava-se de costas.
Olhava as estrelas com um sorriso de satisfação, mas este sorriso morreu em seus lábios quando uma idéia passou por sua cabeça. Ao olhar aquele brilho tão intenso das estrelas lembrou-se que muitas delas já haviam deixado de existir à muito tempo, e sentiu-se da mesma forma, estava ali, interagia, mas há tempos tinha deixado de realmente “existir”.

Nesse ponto lembrou-se de quando ainda era “normal”. Estranho, mas sua memória estava voltando, ele sentia que a presença de Valentine estava fazendo isso. Lembrou de sua mãe, Cassiana, uma bela mulher, independente e cheia de vida, mas naquela época sofria com a discriminação por ter sido mãe solteira. Brian odiava o homem que deveria chamar de pai, seduziu sua mãe e depois a abandonou fugindo com outra mulher.

Mas Cassiana amou Brian desde o primeiro momento em que o sentiu dentro de seu ventre, era como se já o conhecesse de outras vidas, tinha um carinho todo especial e nunca demonstrava tristeza perto de seu querido filho. Eles moravam num casebre perto do bosque, uma casa cedida por pessoas que se apiedavam da situação da pobre mulher. Cassiana tinha muita sabedoria com relação a ervas e por isso diversas pessoas a procuravam em busca de cura para todo tipo de mal. Muitos a chamavam de bruxa e inventavam diversas histórias a seu respeito, Cassiana sofria com isso e o filho também.

Quando Briam começou a freqüentar o colégio sentia-se rejeitado e muitas vezes era surrado por um grupo de garotos que o chamava de filho do diabo. Brian foi ficando cada vez mais revoltado e começou a se isolar, mantinha-se afastado dos outros garotos apenas observando e estudando cada um deles, pensava em um dia se vingar.

No colegial algo aconteceu, uma garota vinda de terras muito distantes entrou na mesma escola que Brian, quando a viu sabia que a amaria até o fim de seus dias. Não tinha coragem de se aproximar, mas um dia andando próximo a uns rapazes cheios de más intenções escutou o nome dela sair da boca nojenta de um deles.

-É Ricardo, o nome dela é Sofia e eu aposto o que quiser que pego ela antes de qualquer um!
Brian não se conteve e sem pensar em mais nada agarrou o garoto pelo colarinho jogando-o contra a parede.
-Se ousar tocar num só fio de cabelo dela eu mato você!
Brian soltou o garoto que estava trêmulo com a reação daquele rapaz tão calmo. Achava até que Brian tinha alguma deficiência mental por ser tão afastado das pessoas, e agora essa manifestação tão bruta por uma garota que ele tinha certeza que o rapaz nem conhecia.
Os dias passaram sem que Brian dissesse qualquer outra palavra, vivia pelos cantos sondando a garota que já havia feito amizade com toda a escola. Às vezes ela olhava em sua direção e ficava a encará-lo, era como se os dois fossem imãs que se atraíam.
Um dia quando Brian chegou em casa pegou a mãe caída no chão, estava com a respiração fraca, segurava um amuleto e o apertava contra o peito.
-Brian...meu filho...- segurou o rosto do rapaz com as mãos- Acho que chegou a hora de eu lhe dizer algo sobre seu pai...
-Não diga nada mamãe, poupe suas forças, você vai ficar bem, vou cuidar de você.
- Não meu bem...eu estou partindo – os olhos do rapaz ficaram marejados- Eu preciso que saiba a verdade, você vai precisar disso para se defender.
Cassiana olhou para os olhos azuis do filho e com muita ternura acariciou seu rosto.
-Seu pai, Brian... seu pai não fugiu, ele continua nos vigiando...- tossiu respirando com dificuldade - Quando o conheci não fazia idéia do que ele era...mas depois veio a surpresa, depois que eu já estava grávida foi que descobri que seu pai...é um Vampiro Stirb Nicht...e ele me garantiu que virá atrás de você...
- Mas o que ele pode querer comigo mãe?
Depois de longa pausa Cassiana voltou a falar com dificuldade.
-Você é um deles, Brian... mas não está desperto, e eu o manteria assim por toda a minha vida, por isso quero que fique com este amuleto, ele manterá teu pai longe...
Entregou o amuleto ao rapaz e logo depois beijou suas mãos.
-Sempre estarei com você meu filho...
Depois disso caiu morta nos braços de Brian que sem ouvir resposta chorava soluçante enquanto perguntava o nome do pai.

Nenhum padre quis fazer o enterro da velha curandeira, julgavam-na uma bruxa e por isso não tinha direito a ser enterrada em solo sagrado. Pois Brian achou muito bom, não queria ficar longe de sua mãe e duvidava muito de toda aquela parafernália “sagrada” daqueles padres hipócritas. Enterrou sua mãe nos fundos da casa, fez para ela um belo arranjo de flores e ervas depositando sob o tumulo.

Ficou dois meses sem aparecer na escola. Quando voltou, as pessoas cochichavam e sentiam medo dele, até gostou dessa reação. Sofia estava ainda mais linda, com seus longos cabelos negros e olhos de um castanho profundo que o seduzia de uma forma mágica.
Naquele dia, Sofia se aproximou. Brian se assustou com a iniciativa da garota, os outros alunos ficaram horrorizados com isso, a garota chegou sorrindo.
- Oi, meu nome é...
-Sofia.- Brian respondeu secamente .
Sem deixar que esta atitude os afastasse a garota continuou animada.
-Isso mesmo, e você deve ser Brian. Muito prazer.- estendeu a mão.
Brian ficou pensativo, dentro dele um sentimento tão profundo de amor, ele não queria que ela se aproximasse, poderia ser rejeitada pelos colegas depois disso. Por isso fingiu não ver a mão estendida e ficou calado.
Sofia recolheu a mão sem graça, mas não se deu por vencida.
- Fiquei sabendo o que houve com sua mãe, eu sinto muito por isso.
- É melhor você ir embora, seus amiguinhos não aprovariam esta tua atitude.
Sofia franziu o cenho e respondeu rispidamente.
-Não preciso que me digam o que devo ou não fazer. Sabia que você era um cara difícil Brian, mas não tinha idéia do quanto! Porque me renuncia dessa forma quando sabe muito bem o que somos feitos um para o outro?

Deixou o rapaz e foi de encontro a seus amigos entrando direto na escola. Brian ficou sem saber o que pensar. Será que ela lia sua mente? Será que também sentia o que ele sentira desde o primeiro dia em que a viu? Seu coração começou a bater forte, já não se sentia tão seguro, sentia-se invadido, como aquela garota podia ter dito algo daquele tipo?
Resolveu não assistir as aulas e foi dar uma volta perto do riacho. Chegando lá viu uma figura sombria sentado próximo à uma enorme pedra. Aproximou-se com cautela. Mas antes mesmo de ver o rosto daquela criatura ouviu sua voz rouca.

- Até que enfim você apareceu Brian, já faz um bom tempo que não nos víamos.
O homem se virou e Brian fitou seus olhos vazios, parecia não ter sentimento algum.
- Quem é você e como sabe meu nome?
- Sou Lucius, seu pai.- estendeu a mão.
Quando Brian tocou a mão de Lucius vários corvos vieram sobre ele. De repente, o rapaz acordou daquelas lembranças, ouvindo o piar de uma coruja. Olhou ao redor, estava no telhado da velha fabrica. Quanto tempo havia se passado? Foi uma recordação bem estranha, como se tivesse de fato viajado até aquela época. Lembranças que há muito havia perdido, e agora Sofia vinha à sua mente juntamente com Valentine...
Que sensação esquisita!

O cordão de prata (capítulo 2)

No trabalho o dia parecia não passar para Valentine que hora e meia olhava ansiosa para o enorme relógio na parede dos fundos da biblioteca.
- 15:23 ainda...- pensou desanimada enquanto mexia no monte de papéis que devia ter colocado em ordem. Não sentia vontade de nada, sua cabeça estava ocupada imaginando o que aquele sonho poderia significar, tinha vontade de esquecer sobre a promessa de não se envolver com magia e perguntar logo ao oráculo sobre o sonho, mas dentro dela duas forças contrárias brigavam intensamente, estava dividida entre o sim e o não. Num gesto de raiva jogou todos os papéis no chão e deitou a cabeça no balcão fechando os olhos e abafando o gemido de raiva.

Segundos antes do ataque de Valentine um belo rapaz aparecia na porta, a garota não o tinha visto, ele se aproximou sorrateiramente e parado ao balcão, na frente dela, perguntou com uma voz que parecia vinda de algum anjo. A Srt poderia me ajudar com algo?
Assustada Valentine rapidamente levantou a cabeça e endireitou os cabelos enquanto dava uma boa olhada no rapaz a sua frente. Tamanha foi a surpresa de ver bem ali, na sua frente, o mesmo rapaz do sonho que murmurou baixinho:
- Não pode ser...
- O que disse?
- Nada...é...me diga em que posso ajudá-lo?- disse tentando disfarsar a surpresa e analisando melhor o visitante. Usava roupas escuras, uma calça justa e uma camisa branca que estava aberta até metade do peito onde podia ver um medalhão de ouro pendurado, tentou decifrar que tipo de medalhão seria aquele mas notou que o rapaz percebia sua curiosidade e voltou a olha-lo nos olhos, e que olhos! Pareciam duas turquesas, olhos de um brilho sobrenatural que a deixava entorpecida.

Voltando a falar, o rapaz tirou do bolso alguns recortes velhos de jornal e apontando para um nome perguntou se ela teria como descobrir onde encontrar a tal pessoa.
- Hum...não fazemos este tipo de serviço, aqui é só uma biblioteca, mas se quiser pode usar um de nossos computadores e fazer sua pesquisa.
Desanimado com a resposta e visivelmente triste, ele apenas agradeceu e se virou para ir embora quando Valentine, sentindo seu coração acelerar, chamou-o de volta.
-Hey...tudo bem, eu o ajudo...
O rapaz virou-se para ela e com um sorriso estonteante, novamente se aproximou do balcão.
- Se fosse possível, gostaria de acompanhar a sua procura.
- Tudo bem, mas para isso você deverá me encontrar aqui hoje às 19h, que é quando acaba meu expediente, daí podemos utilizar sossegados o computador da biblioteca.
Valentine estava totalmente absorvida pela beleza do rapaz, dentro dela uma voz dizia:” o que está fazendo garota? Ficou maluca? Você nem conhece este sujeito. Seja sensata!” Mas ela não queria escutar a voz, queria apenas ter aquele homem por perto. O rapaz quebrou o silêncio :
- Como se chama?
- Valentine...
- Lindo nome, Valentine. Eu me chamo Brian. - e tocando a mão da garota olhou bem fundo nos olhos dela, agradeceu e depois sumiu pela porta enquanto a garota boquiaberta tentava se recuperar.
Valentine não tinha certeza se o ouvira falar obrigado ou se isso tinha sido dito dentro da cabeça dela, foi uma sensação esquisita, parecia que ele falava na mente dela, seu coração descompassado não queria voltar ao normal, suas mãos estavam geladas, sentia-se uma adolescente apesar de seus 22 anos.




Na rua Brian, tomava a direção de uma estradinha de terra que levava ao fim da cidade, enquanto pensava em tudo o que estava acontecendo. Andou até não ver mais sinal de civilização. Quando sentiu que estava só, com seus devaneios, decidiu que era a hora de se concentrar. Precisava reunir energias para abrir o portal. Parou, fechou os olhos, deixou a respiração normalizar. Ficou ali por alguns instantes e quando sentiu que estava pronto, abriu os braços num gesto amplo e certeiro.

No meio da estrada de terra, abriu-se um buraco. Sentiu novamente o bafo quente do deserto em seu rosto. Do lado de lá, a Garganta do Diabo. Aquele era seu lar, desde o dia em que ousara desafiar Lucius. Passado o momento de pessimismo, depois de descobrir que outras pessoas – como Valentine - podiam ter acesso à sua dimensão, Brian sentia suas forças renovadas e uma estimulante sede de vingança. “Isso não vai durar para sempre, ah, não! Perdi apenas uma batalha. Lucius não perde por esperar!”

19h20. Valentine esperava ansiosa na porta da biblioteca, ele estava atrasado e ela, ansiosa como uma garota quando vai para seu primeiro encontro. 20h34. Agora tinha certeza de que ele não viria. Sentiu uma pontada de tristeza e uma decepção imensa. Juntou suas coisas e foi para casa.
O ventinho gelado que entrava pela janela anunciava chuva. Sorriu ao pensar nisso. Adorava quando chovia, parecia que a água que descia do céu limpava sua alma. Inquieta por causa dos acontecimentos recentes, não parava de pensar em Brian. Sentiu raiva por ele tê-la deixado esperando como uma tonta.

Ligou a TV, mas nada lhe distraía. Ultimamente preferia os livros do que ver tanta notícia desastrosa ou aquelas novelas sem conteúdo. Foi até a biblioteca que tinha em casa e pesquisou numa das estantes. Resolveu tirar um livro aleatoriamente. Olhou o nome “Prisioneiro das Trevas”. Adorava estórias de terror.
Acomodou-se na poltrona e começou a ler. Lá fora, o vento havia aumentado e o sino dos ventos pendurado próximo à janela tocava incessantemente. Um clarão iluminou o aposento todo e logo depois, um enorme estrondo fez com que as janelas tremessem.
“...sua alma estava presa àquele vale de trevas e morte, nunca mais vislumbraria a luz do sol Sentia-se enjoado e a visão estava turva. O corpo contorcia-se de dor no chão. Um gosto amargo vinha à sua boca, era arrependimento, jamais deveria ter se deixado encantar pelas misteriosas criaturas noturnas...”

A noite anterior foi mal dormida, o dia demorou a passar. Ainda teve que enfrentar duas horas de ônibus antes de chegar em casa. Seus olhos ardiam. Apesar de estar gostando da leitura, pensou que seria bom fechar os olhos só por uns instantes antes de continuar...
O temporal castigava o vilarejo, parecia uma fera descontrolada. Aos poucos, o som da tempestade foi se distanciando. Virou apenas um leve ruído lá no fundo de sua consciência. Sem perceber, afrouxou um pouco mais os dedos da mão que segurava o livro, deixando-o cair no chão.

Seu corpo estava inerte, começou a sentir um leve formigamento nas pontas dos dedos dos pés e das mãos. Conhecia muito bem aquela sensação. Era seu espírito, querendo se desprender do corpo, ganhar a amplidão e voltar a ser pleno, sem as limitações do corpo físico. Mas ela tinha medo.

“Não, eu não quero!”. Tentou pronunciar essas palavras, mas seus lábios não se moveram. Um fio de consciência ainda tentava brigar contra aquela sensação. Mas ela estava cansada demais. Não tinha força para resistir. Sendo assim, quando se viu, estava sentada e depois de pé. Olhou para o lado. Seu corpo ressonava gostosamente no sofá. Caminhou até a porta e saiu em meio à tempestade. Andava descalça, cabelos soltos, sem se importar com o frio.

A pequena cidade dormia e a moça vagava pelas ruas mal iluminadas. De repente, uma música ao longe atraiu sua atenção. Era uma balada, um rock suave, um pouco triste talvez. A voz o cantor se misturava com os acordes harmoniosos da guitarra. Enquanto andava pela rua, o som começou a aumentar. Identificou aquela fachada. Era o Bar do Lenny, que ela costumava frequentar com as amigas aos sábados. Chegando à porta do bar, pôde entender perfeitamente a letra da música.



“Não se aproxime de mim
Já disse que eu posso te machucar
Meu beijo é quente, mas tem maldição
Se eu te tocar, congelarei seu coração”

Valentine chegou a sorrir com a pobreza da letra, mas seu sorriso esmaeceu quando avistou a banda em cima do palco. Ou melhor, quando viu o vocalista. Era ele, de novo. Brian. Já era tarde, muitos ali estavam bêbados. Gargalhadas, gritos, fumaça, beijos molhados, mãos deslizando pelos corpos suados. Valentine estava no meio da pista, assistindo a tudo sem ser vista por ninguém. Estava confusa, zonza com tanto barulho, sentiu a cabeça girar. Brian segurava o microfone, dançando sensualmente. Ele sabia que chamava a atenção por sua beleza. E parecia gostar disso. A calça justa, a camisa aberta, os cabelos compridos e aquele olhar... irresistivelmente sobrenatural.

Mais uma vez, seus olhos penetraram nos dela, feito lâminas afiadas. Valentine sentiu uma fisgada no peito. A música, as vozes e as gargalhadas... tudo isso virou silêncio naquele momento. Ficaram se olhando por um segundo que pareceu eternidade. Nesse tempo, as cenas do sonho corriam na mente dela e se misturavam com outras lembranças, memórias que ela nem sabia que tinha. A tontura foi aumentando, ela precisava sair dali.

Virou-se e saiu correndo, passando por dentro de mesas e pessoas, sem nem notar. Tudo o que ela queria era respirar. Chegando lá fora, sentiu o frescor do sereno e um grande alívio. A chuva tinha passado. Notou um clarão por detrás da nuvem que tentava se dissipar. “É lua cheia! Tinha até me esquecido.” Fazia tempo que ela não se guiava mais pelos ciclos lunares e nem pelas estações do ano.

Continuou caminhando até se sentir mais calma, sem pensar para onde estava indo. De repente, a rua de pedras acabou, as casas e a estrada de terra também. Caminhava num campo de mato rasteiro. A lua alta agora se mostrava, plena e clara, com uma aura azulada ao seu redor. Cansada, Valentine deitou-se na relva e ficou a olhar para cima. Aos poucos, sentiu a visão perder o foco. Viu a face da Deusa se formar na superfície da lua, que parecia se aproximar dela rapidamente.

Podia ver a bela mulher com uma lua crescente desenhada na testa. Seu olhar deixava transparecer certo desapontamento, o que fez com que Valentine desviasse seus olhos dos dela. A Deusa se aproximou ainda mais, tocou seu queixo com suavidade, erguendo-lhe o olhar à altura do dela, beijou o ponto entre as sobrancelhas e colocou em seu pescoço um cordão de prata com um pingente em forma de lua crescente, tal como a que ela carregava na testa.

- Valentine, você não pode fugir do seu destino! Não se esqueça do seu juramento. Você terá uma árdua missão a cumprir. Liberte o pássaro do deserto de sua maldição e você terá enfim, a resposta que tanto procura. Nunca se esqueça que eu sempre estarei junto de ti. Diante dessa visão, Valentine não conseguiu mais resistir e entregou-se à emoção. Caiu de joelhos aos pés da Deusa e chorou com as mãos no rosto. A escuridão tomou conta de sua consciência e ela então desfaleceu.

Acordou com o toque insistente do celular e uma dor tremenda no dorso. – Droga, dormi no sofá, pensou. Levou a mão ao pescoço, numa tentativa de aliviar a dor. Foi então que sentiu o cordão de prata. Deslizou a mão entre os seios e pegou a lua crescente. - Não é possível! Eu o tinha jogado no Rio das Ilusões! O telefone ainda tocava e ela voltou à realidade.
Era Celeste, uma amiga que não via há bastante tempo. Desde – Valen! Que saudades, menina!

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A garganta do Diabo (capítulo 1)

Na beira do penhasco Brian deixava o vento tocar seu rosto, gostava daquele lugar mais do que tudo. Sentia-se bem, sentia-se vivo... Alto, olhos azuis e longos cabelos da cor do sol, Brian era um rapaz que aparentava ter 25 anos, mas tinha bem mais do que isso, já nem se lembrava a quanto tempo estava naquele vilarejo.

As memórias estavam cada vez mais apagadas, sabia que isso aconteceria com o tempo, Lucius já o tinha informado que seria assim, mas não queria mais viver daquela forma, não aguentava mais ter que se esconder de seus caçadores. Brian não era um vampiro como os de contos góticos, ele drenava energias, de tudo ao seu redor, foi dificil aprender a controlar isso, quantas pessoas morreram...vales inteiros secaram...e agora que ele havia dominado seu poder já não queria sequer viver.

Fechou os olhos enquanto sentia o ar quente que acariciava seu rosto, queria abraçar aquela energia intensa que vinha do sol ao entardecer. Ao longe uma garota o observava curiosa.
Começou a se aproximar bem devagar para que o rapaz não percebesse sua presença. Mesmo sem nunca ter visto aquele rapaz, algo em seu íntimo dizia que estava diante de uma bela encrenca. E isso a deixava muito mais instigada.

Além disso, Valentine já tinha desistido de confiar em sua intuição. Fazia de tudo para não ouvi-la e a desafiava sempre que possível. Agora, ela tinha em sua frente, um ótimo motivo. “Ele é lindooo!” pensou, aproximando-se mais um pouco. “Por um homem desses, seria capaz de jogar tudo pro alto!”

Com a ousadia que era sua marca registrada entre as amigas e um sorriso malicioso nos lábios, tocou de leve as costas do rapaz. Subitamente, Brian sentiu um gelo percorrer-lhe a espinha e virou-se num impulso quase violento. Foi então que viu seu olhar transtornado, refletido nos olhos de Valentine. Seus corpos muito próximos, quase a se tocar, chegou a sentir o hálito quente e ofegante dela. Naquele momento, quase se esqueceu de quem era.

Quebrando o silêncio, ela perguntou: “Incomodo?” Brian não tinha saída, estava entre o precipício e a tentação de um desejo que acabara de despertar dentro de si. “Afaste-se!” gritou, numa ordem que mais parecia uma súplica. “Não vê que quero ficar só?!” por um momento, pensou que o melhor seria se jogar no abismo e acabar com tudo de uma vez. Não queria correr o risco de novo. Estava cansado.

Valentine não tinha ido embora. Ele sentia que ela o observava. A grande fenda conhecida como Garganta do Diabo estava a dois passos de distância dele. Vagarosamente, como quem não quisesse fazer barulho algum, Brian avançou mais um passo. A terra seca e arenosa do deserto se moveu sob seus pés e fez rolar um pedregulho. O silêncio fora quebrado. A pequena pedra desceu batendo nas paredes do abismo e ecoando até não mais se ouvir.

“Então é isso.” – pensou Brian dando uma inspirada profunda. “Este é o fim.” Sentenciou em segredo, sua voz interior. Ainda parada a poucos metros dele, Valentine o fitava. Não ousava mover um centímetro sequer. Respirava, pausadamente, segurando para não ofegar. Brian deu um impulso e se lançou, sem avisar.

Queria sentir o vento correr pela face, nem que fosse pela última vez. Com muita sorte, as formações rochosas e contundentes - os dentes afiados do próprio Diabo – dilacerariam seu corpo e então, não restaria chance de sobrevivência. Estaria livre, enfim, da maldição.
Ao perceber o que o rapaz acabara de fazer, Valentine arregalou os olhos. Seu grito ecoou por todo o deserto. – “Nãaaaaaao!!! Mais algumas pedras rolaram para dentro do fosso. Viu um gavião alçando vôo, batendo asas ruidosamente. Depois, novamente o silêncio. Valentine estava debruçada à beira do penhasco. Nem sinal de Brian. Lá dentro da Garganta, apenas o silêncio e o bafo quente do deserto. O pôr do sol alaranjava tudo e dava ainda mais impressão de que a terra estava mergulhada em brasas.
Num sobressalto, enxarcada de suor, Valentine despertou do sono agitado. Estava em sua cama e o sol alto batia em cheio no seu rosto. – “Caramba! Perdi a hora de novo! Desta vez, meu chefe arranca meu fígado!” Saltou da cama ainda zonza. Enquanto escovava os dentes, apressada, olhou-se no espelho. Subitamente, uma imagem do sonho emergiu da memória. Viu novamente os olhos de Brian dentro dos seus. “Parecia tão real!”, pensou, artodoada. “O que poderia significar?” Piscou os olhos como quem voltava de um transe, querendo afastar aquele pensamento.



Havia algum tempo que decidira não mais praticar a magia. Queria evitar as visões. Ou melhor, as PREvisões....