terça-feira, 27 de abril de 2010

O cordão de prata (capítulo 2)

No trabalho o dia parecia não passar para Valentine que hora e meia olhava ansiosa para o enorme relógio na parede dos fundos da biblioteca.
- 15:23 ainda...- pensou desanimada enquanto mexia no monte de papéis que devia ter colocado em ordem. Não sentia vontade de nada, sua cabeça estava ocupada imaginando o que aquele sonho poderia significar, tinha vontade de esquecer sobre a promessa de não se envolver com magia e perguntar logo ao oráculo sobre o sonho, mas dentro dela duas forças contrárias brigavam intensamente, estava dividida entre o sim e o não. Num gesto de raiva jogou todos os papéis no chão e deitou a cabeça no balcão fechando os olhos e abafando o gemido de raiva.

Segundos antes do ataque de Valentine um belo rapaz aparecia na porta, a garota não o tinha visto, ele se aproximou sorrateiramente e parado ao balcão, na frente dela, perguntou com uma voz que parecia vinda de algum anjo. A Srt poderia me ajudar com algo?
Assustada Valentine rapidamente levantou a cabeça e endireitou os cabelos enquanto dava uma boa olhada no rapaz a sua frente. Tamanha foi a surpresa de ver bem ali, na sua frente, o mesmo rapaz do sonho que murmurou baixinho:
- Não pode ser...
- O que disse?
- Nada...é...me diga em que posso ajudá-lo?- disse tentando disfarsar a surpresa e analisando melhor o visitante. Usava roupas escuras, uma calça justa e uma camisa branca que estava aberta até metade do peito onde podia ver um medalhão de ouro pendurado, tentou decifrar que tipo de medalhão seria aquele mas notou que o rapaz percebia sua curiosidade e voltou a olha-lo nos olhos, e que olhos! Pareciam duas turquesas, olhos de um brilho sobrenatural que a deixava entorpecida.

Voltando a falar, o rapaz tirou do bolso alguns recortes velhos de jornal e apontando para um nome perguntou se ela teria como descobrir onde encontrar a tal pessoa.
- Hum...não fazemos este tipo de serviço, aqui é só uma biblioteca, mas se quiser pode usar um de nossos computadores e fazer sua pesquisa.
Desanimado com a resposta e visivelmente triste, ele apenas agradeceu e se virou para ir embora quando Valentine, sentindo seu coração acelerar, chamou-o de volta.
-Hey...tudo bem, eu o ajudo...
O rapaz virou-se para ela e com um sorriso estonteante, novamente se aproximou do balcão.
- Se fosse possível, gostaria de acompanhar a sua procura.
- Tudo bem, mas para isso você deverá me encontrar aqui hoje às 19h, que é quando acaba meu expediente, daí podemos utilizar sossegados o computador da biblioteca.
Valentine estava totalmente absorvida pela beleza do rapaz, dentro dela uma voz dizia:” o que está fazendo garota? Ficou maluca? Você nem conhece este sujeito. Seja sensata!” Mas ela não queria escutar a voz, queria apenas ter aquele homem por perto. O rapaz quebrou o silêncio :
- Como se chama?
- Valentine...
- Lindo nome, Valentine. Eu me chamo Brian. - e tocando a mão da garota olhou bem fundo nos olhos dela, agradeceu e depois sumiu pela porta enquanto a garota boquiaberta tentava se recuperar.
Valentine não tinha certeza se o ouvira falar obrigado ou se isso tinha sido dito dentro da cabeça dela, foi uma sensação esquisita, parecia que ele falava na mente dela, seu coração descompassado não queria voltar ao normal, suas mãos estavam geladas, sentia-se uma adolescente apesar de seus 22 anos.




Na rua Brian, tomava a direção de uma estradinha de terra que levava ao fim da cidade, enquanto pensava em tudo o que estava acontecendo. Andou até não ver mais sinal de civilização. Quando sentiu que estava só, com seus devaneios, decidiu que era a hora de se concentrar. Precisava reunir energias para abrir o portal. Parou, fechou os olhos, deixou a respiração normalizar. Ficou ali por alguns instantes e quando sentiu que estava pronto, abriu os braços num gesto amplo e certeiro.

No meio da estrada de terra, abriu-se um buraco. Sentiu novamente o bafo quente do deserto em seu rosto. Do lado de lá, a Garganta do Diabo. Aquele era seu lar, desde o dia em que ousara desafiar Lucius. Passado o momento de pessimismo, depois de descobrir que outras pessoas – como Valentine - podiam ter acesso à sua dimensão, Brian sentia suas forças renovadas e uma estimulante sede de vingança. “Isso não vai durar para sempre, ah, não! Perdi apenas uma batalha. Lucius não perde por esperar!”

19h20. Valentine esperava ansiosa na porta da biblioteca, ele estava atrasado e ela, ansiosa como uma garota quando vai para seu primeiro encontro. 20h34. Agora tinha certeza de que ele não viria. Sentiu uma pontada de tristeza e uma decepção imensa. Juntou suas coisas e foi para casa.
O ventinho gelado que entrava pela janela anunciava chuva. Sorriu ao pensar nisso. Adorava quando chovia, parecia que a água que descia do céu limpava sua alma. Inquieta por causa dos acontecimentos recentes, não parava de pensar em Brian. Sentiu raiva por ele tê-la deixado esperando como uma tonta.

Ligou a TV, mas nada lhe distraía. Ultimamente preferia os livros do que ver tanta notícia desastrosa ou aquelas novelas sem conteúdo. Foi até a biblioteca que tinha em casa e pesquisou numa das estantes. Resolveu tirar um livro aleatoriamente. Olhou o nome “Prisioneiro das Trevas”. Adorava estórias de terror.
Acomodou-se na poltrona e começou a ler. Lá fora, o vento havia aumentado e o sino dos ventos pendurado próximo à janela tocava incessantemente. Um clarão iluminou o aposento todo e logo depois, um enorme estrondo fez com que as janelas tremessem.
“...sua alma estava presa àquele vale de trevas e morte, nunca mais vislumbraria a luz do sol Sentia-se enjoado e a visão estava turva. O corpo contorcia-se de dor no chão. Um gosto amargo vinha à sua boca, era arrependimento, jamais deveria ter se deixado encantar pelas misteriosas criaturas noturnas...”

A noite anterior foi mal dormida, o dia demorou a passar. Ainda teve que enfrentar duas horas de ônibus antes de chegar em casa. Seus olhos ardiam. Apesar de estar gostando da leitura, pensou que seria bom fechar os olhos só por uns instantes antes de continuar...
O temporal castigava o vilarejo, parecia uma fera descontrolada. Aos poucos, o som da tempestade foi se distanciando. Virou apenas um leve ruído lá no fundo de sua consciência. Sem perceber, afrouxou um pouco mais os dedos da mão que segurava o livro, deixando-o cair no chão.

Seu corpo estava inerte, começou a sentir um leve formigamento nas pontas dos dedos dos pés e das mãos. Conhecia muito bem aquela sensação. Era seu espírito, querendo se desprender do corpo, ganhar a amplidão e voltar a ser pleno, sem as limitações do corpo físico. Mas ela tinha medo.

“Não, eu não quero!”. Tentou pronunciar essas palavras, mas seus lábios não se moveram. Um fio de consciência ainda tentava brigar contra aquela sensação. Mas ela estava cansada demais. Não tinha força para resistir. Sendo assim, quando se viu, estava sentada e depois de pé. Olhou para o lado. Seu corpo ressonava gostosamente no sofá. Caminhou até a porta e saiu em meio à tempestade. Andava descalça, cabelos soltos, sem se importar com o frio.

A pequena cidade dormia e a moça vagava pelas ruas mal iluminadas. De repente, uma música ao longe atraiu sua atenção. Era uma balada, um rock suave, um pouco triste talvez. A voz o cantor se misturava com os acordes harmoniosos da guitarra. Enquanto andava pela rua, o som começou a aumentar. Identificou aquela fachada. Era o Bar do Lenny, que ela costumava frequentar com as amigas aos sábados. Chegando à porta do bar, pôde entender perfeitamente a letra da música.



“Não se aproxime de mim
Já disse que eu posso te machucar
Meu beijo é quente, mas tem maldição
Se eu te tocar, congelarei seu coração”

Valentine chegou a sorrir com a pobreza da letra, mas seu sorriso esmaeceu quando avistou a banda em cima do palco. Ou melhor, quando viu o vocalista. Era ele, de novo. Brian. Já era tarde, muitos ali estavam bêbados. Gargalhadas, gritos, fumaça, beijos molhados, mãos deslizando pelos corpos suados. Valentine estava no meio da pista, assistindo a tudo sem ser vista por ninguém. Estava confusa, zonza com tanto barulho, sentiu a cabeça girar. Brian segurava o microfone, dançando sensualmente. Ele sabia que chamava a atenção por sua beleza. E parecia gostar disso. A calça justa, a camisa aberta, os cabelos compridos e aquele olhar... irresistivelmente sobrenatural.

Mais uma vez, seus olhos penetraram nos dela, feito lâminas afiadas. Valentine sentiu uma fisgada no peito. A música, as vozes e as gargalhadas... tudo isso virou silêncio naquele momento. Ficaram se olhando por um segundo que pareceu eternidade. Nesse tempo, as cenas do sonho corriam na mente dela e se misturavam com outras lembranças, memórias que ela nem sabia que tinha. A tontura foi aumentando, ela precisava sair dali.

Virou-se e saiu correndo, passando por dentro de mesas e pessoas, sem nem notar. Tudo o que ela queria era respirar. Chegando lá fora, sentiu o frescor do sereno e um grande alívio. A chuva tinha passado. Notou um clarão por detrás da nuvem que tentava se dissipar. “É lua cheia! Tinha até me esquecido.” Fazia tempo que ela não se guiava mais pelos ciclos lunares e nem pelas estações do ano.

Continuou caminhando até se sentir mais calma, sem pensar para onde estava indo. De repente, a rua de pedras acabou, as casas e a estrada de terra também. Caminhava num campo de mato rasteiro. A lua alta agora se mostrava, plena e clara, com uma aura azulada ao seu redor. Cansada, Valentine deitou-se na relva e ficou a olhar para cima. Aos poucos, sentiu a visão perder o foco. Viu a face da Deusa se formar na superfície da lua, que parecia se aproximar dela rapidamente.

Podia ver a bela mulher com uma lua crescente desenhada na testa. Seu olhar deixava transparecer certo desapontamento, o que fez com que Valentine desviasse seus olhos dos dela. A Deusa se aproximou ainda mais, tocou seu queixo com suavidade, erguendo-lhe o olhar à altura do dela, beijou o ponto entre as sobrancelhas e colocou em seu pescoço um cordão de prata com um pingente em forma de lua crescente, tal como a que ela carregava na testa.

- Valentine, você não pode fugir do seu destino! Não se esqueça do seu juramento. Você terá uma árdua missão a cumprir. Liberte o pássaro do deserto de sua maldição e você terá enfim, a resposta que tanto procura. Nunca se esqueça que eu sempre estarei junto de ti. Diante dessa visão, Valentine não conseguiu mais resistir e entregou-se à emoção. Caiu de joelhos aos pés da Deusa e chorou com as mãos no rosto. A escuridão tomou conta de sua consciência e ela então desfaleceu.

Acordou com o toque insistente do celular e uma dor tremenda no dorso. – Droga, dormi no sofá, pensou. Levou a mão ao pescoço, numa tentativa de aliviar a dor. Foi então que sentiu o cordão de prata. Deslizou a mão entre os seios e pegou a lua crescente. - Não é possível! Eu o tinha jogado no Rio das Ilusões! O telefone ainda tocava e ela voltou à realidade.
Era Celeste, uma amiga que não via há bastante tempo. Desde – Valen! Que saudades, menina!

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